A Teia

Quinta-feira, 20 Fevereiro, 2020

Vítor Encarnação

A vida é uma teia de interesses. O correr dos dias é uma enxurrada de decisões, uma amálgama de emoções que nos fazem agarrar a qualquer coisa para não irmos ao fundo. Tanta dúvida, tanta encruzilhada, tanta opção, tanta inquietação.
Para nos mantermos à tona subimos à mais pequena pedra, abraçamo-nos ao vento, pegamos em pontas soltas, deitamo-nos em qualquer colo, deslumbramo-nos com qualquer luz.
Temos medo. Todos temos medo de falhar. De desaproveitar a existência, de perder o pé, de ficar para trás, esquecidos, pobres, indiferentes, entorpecidos, pouco mais que números, motivo de gozo, desilusão de pais, vergonha de filhos. Não queremos ficar enterrados em mediania, incapazes de um golpe de asa, entregues à rotina, submissos como cães gordos, dando ao rabo, rosnando em surdina para os donos não nos ouvirem.
Não admitimos ficar de fora, não integrar a vanguarda, não sermos reluzentes, crepitantes, interessantes, válidos, modernos, memoráveis.
E para darmos conta de tudo isto temos o raciocínio. Ou o instinto de sobrevivência que é a mesma coisa em situações de aflição.
Alguns de nós descobrem-se a si mesmos, projetam-se, avaliam-se, buscam horizontes, não têm raiva nas gengivas, leem, respeitam a diferença, propõem, debatem, sentem ternura, sentem vergonha, calam-se quando o silêncio se levanta, falam sem cinismo, usam as mesmas palavras na cara e nas costas, têm almas de veludo branco, dormem contentes com as suas consciências.
E sabem perder porque sabem que perder é apenas um sol-posto. De manhã há mais.
E há outros de nós que perderam o equilíbrio, calculam as perdas e os ganhos, as mais-valias, os proveitos. Fazem contas, são usurários, maquiavélicos. Toldados pela gula, colam-se como lapas, agarram-se como carraças, ferram o dente e não largam. São os guerrilheiros das nossas ruas, dos nossos cafés, do nosso mundo pequeno e vil.
São aranhas numa teia. Esperam por homens bons como quem espera por moscas ingénuas. Para os apanharem desprevenidos e com um sorriso nas suas caras ruins os usarem e os deitarem para o lado, secos e gastos.
Para os enlearem, para os prenderem, para os sugarem, para lhes arrancarem as suas asas, para lhes taparem os olhos, as bocas, para lhe roubarem a sua liberdade, os seus sonhos, as ilusões, as palavras bonitas, para os comerem com as suas naturezas más. Para dizerem mal nos seus conluios de aranhas perdidas.
Os homens são dicionários de antónimos. Zangados com o seu significado, pouco ou muito ou nenhum, rasgam o papel que os sustenta. Não se admitem. Não se suportam. São vespas furiosas dentro de uma garrafa de vidro. A existência é uma eterna garrafa de vidro fechada. Um espelho imenso que reflete sombras, terrores e glórias vãs a que só as campas vêm dar descanso.
A vida é uma teia.
Voemos então por cima dela.
Abalemos com os pássaros.

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