Eu era pequeno e costumava estar sentado ao fogo, eu de um lado do chupão, a minha avó do outro, o luto a escorrer-lhe corpo abaixo, desde o lenço até aos sapatos, a cinza do tempo a espreitar para fora do lenço, o negrume a perdoar-lhe unicamente o rosto e as mãos, a lenha a queimar o frio, o lume fazendo desenhos de fogo, as torradas untadas de manteiga e de ternura, às vezes ouvia-se a chuva, às vezes ouvia-se o vento, às vezes ouvia-se uma coruja. Atrás de mim, as sombras batiam na parede e calavam-se. O escuro agasalhava-me e eu não sabia o que era o medo.
Eu não sabia o que era o medo até àquela noite em que a minha avó me contou a história da costureirinha. A meio da história, no princípio da aflição, as roupas negras da minha avó começaram a derramar-se para o chão, corriam como água preta, encharcaram-me os sapatos, uma coisa gelada foi subindo por mim acima e adormeceu-me as pernas, depois os braços, depois a boca, tomou conta do peito, apressou o coração.
Lá fora uma coruja riscava o silêncio, a chuva batia à porta, batia às janelas, arranhava as paredes e o telhado com unhas de água, batia, batia, cuidava de partir tudo, o vento já tinha entrado, o vento já havia derrubado qualquer coisa no corredor, qualquer coisa já caíra no corredor, eu não sabia o que era, um barulho tinha nascido no caminho para o meu quarto, a cinza engoliu o pão, o fogo fazia estalar os ossos do azinho, tão frio era aquele fogo que fazia desenhos nas sombras que ardiam nas paredes e gritavam de dor. Atrás de mim, o escuro despia-me.
O medo é uma casa onde vivem fantasmas que nos habitam, dentro de nós, no caminho que nos leva ao quarto, vivem assombrações e desassossegos. Ao longo da vida, já com as avós mortas, vamos coleccionando inquietudes, vamos abrindo portas que dão para sítio nenhum, acreditamos ver portas que se abrem para abismos, primeiro vem o medo do papão, depois o medo do corpo do outro, depois o medo de olharmos para dentro de nós e não nos entendermos, depois o medo do insucesso, depois o medo da doença, depois o medo da perda, depois o medo da morte.
O medo é uma porta que quando se abre nunca mais se consegue fechar.
Era uma vez uma porta que se abriu para dentro de uma casa escura.
Dentro dela, para sempre, a costureirinha, costura, costura…
O autor utiliza o novo
Acordo Ortográfico