É no silêncio que a dor dói mais, principalmente quando o barulho da chave a rodar na fechadura é a última coisa que ouço antes de entrar na saudade que escorre das paredes.
Não posso aceitar que quando eu fecho a porta tu não estejas na cozinha a fazer a sopa e a ralares-te comigo. Estavas invariavelmente na cozinha, dizias que na cozinha o teu cansaço amainava e a vida te dava tréguas. E que por entre tachos, receitas e temperos, vivias mais. Talvez por isso o lume do fogão estivesse sempre brando, talvez por isso jantássemos sempre tão tarde, noite fora a mastigarmos a ternura de nos termos aos dois.
Na sala, a televisão estava sempre ligada, era para te fazer companhia, para haver barulho porque no silêncio a dor dói mais, dizias tu.
E eu não te percebia, porque eu não tinha silêncio nem dor dentro de mim e entrava feliz em casa por saber que tu estavas à minha espera e me amavas muito.
Agora entro e a porta já não abre nada. Dantes abria a tua mão nos meus cabelos e no meu rosto. Esperava que lavasses a loiça, arrumasses o avental e viesses sentar-te a meu lado no sofá. E eu, que era sempre pequenino dentro dos teus olhos, deitava a minha cabeça no teu colo para me cantares canções de embalar. E tu, com a tua voz única de seres minha mãe, matavas os meus fantasmas, expulsavas os meus medos, abrias-me portas e apontavas-me outro amanhã. E eu adormecia dentro dos teus dedos de luz acesa na minha vida.
Agora fumo outro cigarro e não tenho fome e não acendo a televisão porque já nada me faz companhia.
Já tentei entrar na cozinha, mas não consegui. Fiquei à porta com um nó no estômago, à espera de te ouvir pôr a mesa, à espera de tu me chamares e eu dizer que já ia. Não entrei. Não seria capaz de olhar o avental que tu ali deixaste pendurado à espera de haver outra noite em que tu te ralarias comigo por eu comer tão pouco. Mas sabes, eu não precisava de comer muito. Para ficar saciado, chegava-me que tu me embalasses no berço das tuas rugas.
Parecíamos eternos, nós os dois. Tantas vezes te ralaste tu comigo. Tantos beijos te dei eu enquanto tu fazias a sopa e me mandavas ir baixar a televisão porque eu tinha chegado e tu já tinhas companhia. Tantas vezes ficámos nós noite fora enganando mágoas com o doce dos teus pudins. Tantas vezes me levantaste o ânimo. Tantas vezes nasci eu de ti.
Espalhei as tuas fotografias pela casa. Assim que abro a porta vejo-te comigo ao colo no dia do meu baptizado. Tu sorrias e eu estava vestido de branco. Não é como agora que não é uma coisa nem outra.
Mas há-de haver um dia em que eu vou deixar uma fotografia tua em cima da mesa da cozinha. Talvez num dia em que a dor amaine e eu já consiga ter um pouco mais de fome.
Talvez num dia em que eu seja capaz de olhar o teu avental sem chorar.