<i>Elogiar desmesuradamente os talentos de quem temos por um grande canalha é tão aviltante como atacar ferozmente as inabilidades de quem temos por um grande amigo.</i>
Anónimo do séc. XVIII
Quando eu era muito novo morri quando o meu pai morreu ainda muito novo. Não me lembro muito bem. Nessa altura já o meu cão era velho e parece-me que morreu também. E não se importou muito com isso. Já tinha acontecido o mesmo com o meu avô. O meu cão chegou mais tarde ao cemitério, poisou o focinho entre as grades do portão e ficou imóvel e calmo a ver o enterro, longe dos gritos, dos desmaios, das flores, do discurso do padre que ninguém pediu e dos outros cães.
Por minha causa, a minha mãe e a minha avó não morreram logo. E o meu cão também não, eu cheirava como o meu pai. E puxava-lhe as orelhas com força, como o meu pai. Mas a minha avó mal via, mal cheirava, mal sentia, por isso já não precisava de mim para viver, nem eu precisava dela. Foi esperar a morte para longe de mim e da minha mãe. A minha mãe ainda não podia esperar e não tinha força para se despedir de mim. O meu cão estava sempre a olhar para ela, não lhe largava a consciência por um instante. O meu cão obrigou a minha mãe a jurar em voz alta. Levantava-a da cama todas as manhãs para ela não se esquecer de mim, para lhe lembrar o juramento.
A minha mãe e o cão cumpriram. Já podiam esperar a morte em sossego. Mas eu já tinha morrido muito novo quando o meu pai ainda muito novo morreu por ter jurado em voz alta ao pé de mim, da minha mãe e do meu cão. Não me lembro do meu pai, mas lembro-me disso. O meu cão vigiava-o e perseguia-o para todo o lado. O meu pai morreu a cumprir o juramento, que é como quem diz, a trabalhar como um cão. Por isso o meu cão não se importou muito com isso. Já tinha acontecido o mesmo com o meu avô.
O meu cão acompanhou-me os dias nas noites daquela casa de tantos juramentos. Havia um quarto escuro. Havia lá fora uma árvore que dava sombra ao calor, mas havia um sol que enchia o céu e embrulhava a árvore para a fazer transpirar. Lá estava também o meu cão castanho a morrer enterrado na terra amarela da cor da seara. A vara estava quieta e junta a fingir que eram muitos os porcos magros que pareciam o meu cão estendido ao pé do meu bordão, magro e quieto. O pó sujava as ondas do calor a vibrar no horizonte cheio do sol amarelo da cor do céu. À noite, haveria um quarto escuro naquela casa, e a árvore já não era precisa para nada. O cão negro da cor da noite preferia sempre ficar com os porcos. Ao pé do meu bordão estava a minha corda amarela da cor do cão. Eu sabia sempre onde ela estava. Às vezes, eu cantava em voz alta para me lembrar das vezes em que ouvia cantar os homens lá na venda, e também porque o meu cão acordava e vinha ver-me, e às vezes ficava ali ao pé de mim até que eu parava de me lembrar e ficava a cantar baixinho, a brincar com a corda, porque o cão já dormia com os porcos.
De dia não mexia na corda, ficava a vê-la para me lembrar das vezes em que brincava à corda com os moços morenos da cor do cão. Tinha medo de lhe tocar e que ela me prometesse que não podia ser de outra maneira, porque nada mais havia ali que o meu corpo desejasse tocar. Morrer era como encolher os ombros e ser levado pela pendência dolente do corpo. Naquele lugar a morte não tinha por onde fugir, porque só havia aquele lugar em todo o tempo. A árvore estava sempre em qualquer direcção. O meu cão também estava cansado, já não abria os olhos, e dormia junto dos porcos que cheiravam como eu. E eu chorava cantando, como os homens que cantavam chorando a sua amnésia de futuro. Mas não havia ninguém para chorar comigo. Era isso a solidão. Só uma casa com um quarto escuro, uma árvore, um cão, os porcos, o sol e eu que era isso tudo sem mais nada, sem conseguir existir. Havia a corda. Uma espécie de Deus, uma espécie de amante. A minha liberdade absoluta, o meu amor absoluto.
No dia em que ao quarto escuro daquela casa veio também a luz gelada da lua, eu não pude deixar de agarrar a corda com a força do alívio. O dia e a noite estenderam-se no meu quarto escuro da cor da lua. Era toda a minha vida que vinha despedir-se de mim. E a corda estava tão quente como o frio das minhas mãos da cor da casa. Todo o meu sangue já estava a correr na corda a correr na árvore a abraçar os porcos e o meu cão. A minha mãe acenava-me pendurada na corda agarrada à árvore. O quarto escuro daquela casa já esperava outra solidão.
Quando vieram os homens, encontraram-me a corda abraçada ao meu pescoço. Parecia uma veia gorda a rebentar a pele e a chupar a árvore que abraçava os porcos da cor da árvore. O cão também estava junto. O meu cão não abriu os olhos. E eu cheirava da mesma maneira.
(<b>P.S.: </b>O essencial deste texto foi escrito há cerca de 10 anos. Quando tudo era igual ao que é hoje…)