Bispo de Beja, D. Fernando Paiva, reconhece em entrevista que existem “questões estruturais” que “precisam de ser cuidadas” na região do Baixo Alentejo em matéria de integração das comunidades migrantes, além de ser necessário denunciar redes de tráfico humano e exploração laboral.
ENTREVISTA_Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Agência Ecclesia)
Já tem um retrato social da Diocese de Beja, uma diocese onde se agrava o despovoamento, onde aumentam os focos preocupantes também de pobreza?
Sim, é verdade. Eu estou ainda em fase de conhecer. Tenho feito várias viagens pelo Baixo Alentejo, pelo Alentejo Litoral… Há o problema da desertificação, que aliás não é apenas específico do Alentejo, acontece, penso, que um pouco por todo o país, sobretudo nas zonas interiores. Temos também a questão dos migrantes que vão chegando, sobretudo para os trabalhos agrícolas, e é também uma questão a que estamos atentos e que também levanta alguns desafios.
Os focos de pobreza na região são preocupantes, nomeadamente o aumento da população em situação de sem-abrigo e também este fluxo migratório, que por vezes desencadeia também esse processo de pobreza?
Sim, é verdade, porque muitos destes migrantes que vêm, vêm para trabalhar na agricultura, muitas vezes são trabalhos sazonais, e que depois, quando a estação própria das colheitas passa, há ali algum tempo em que não há trabalho para as pessoas. Penso que isso vai agravando a situação dos sem-abrigo, que de facto em Beja ultimamente tem assumido alguma proporção. Por outro lado também temos a questão da população idosa, uma população muito envelhecida, em alguns concelhos, e, portanto, há também esta resposta que as instituições vão dando, mas que vou percebendo que nem sempre é suficiente.
E a estabilidade laboral, essa acredito que seja um problema bastante persistente?
Sem dúvida. Eu tenho a noção de que toda esta questão dos migrantes precisa de uma abordagem que tem que ser muito concertada com vários intervenientes. Não apenas as autoridades, no aspeto legislativo, da forma de acolher e de acolher de uma forma bem estruturada toda esta gente que vem e que de facto precisamos deles, mas também todo o trabalho que deve ser feito e que já está a ser feito, mas penso que nem sempre se consegue fazer tudo o que seria necessário, ao nível, por exemplo, da fiscalização das condições de trabalho, que é um tema muito importante, a questão também das condições da habitação, mesmo até a legislação laboral. Nalguns casos – alguns empresários têm me dito isso – estará um tanto desajustada face a esta nova circunstância de gente que vem de outros países. Há uma sazonalidade no trabalho, e depois todo o trabalho que penso que deve ser feito, juntando vários esforços, além daqueles que eu já referi, os empresários, e, portanto, há aqui todo um trabalho de conjunto e das forças policiais, porque há situações de exploração laboral, também de redes, que se pode dizer que são mesmo de tráfico humano.
Essas situações persistem no terreno?
Eu vou tendo informação que sim, que vai havendo situações que vão persistindo, às vezes não se consegue perceber tudo, porque tudo isto às vezes é muito camuflado, mas tenho alguns sinais de que isso vai acontecendo, e estamos muito atentos e de alguma forma também preocupados, e há este apelo que faço e que fazemos a que haja um empenhamento maior dos vários intervenientes já referidos para que esta situação se possa resolver e melhorar.
A Igreja tem denunciado estas situações. É só a Igreja que denuncia? Há pouco falou da necessidade de maior fiscalização laboral para eventualmente tentar estancar este tipo de exploração e este tipo de abusos. Numa entrevista, penso que em novembro de 2023, o presidente Cáritas de Beja dizia que as situações de exploração estavam a acontecer a toda a hora…
Sim, é verdade, temos informação de que vai havendo gente que, mesmo até na questão da habitação, por exemplo, que de repente aparece um fluxo muito grande de migrantes que estão a chegar, e temos informação e sabemos que vai havendo gente que fica alojada em situações precárias, com, sei lá, 20 pessoas numa casa, e tudo isso não é bom. Mesmo até a questão do reagrupamento familiar, que nem sempre existe, muitas vezes acabam por ser grupos de homens que vêm e, em alguns casos, já vai acontecer de virem também as famílias, mas na maioria do que vou vendo, há uma população masculina que também não é uma situação de todo o ideal.
Quer dizer que há “Odemiras” escondidas no território?
Sim, escondidas, mas de alguma forma também visíveis, porque nós passamos naquela zona litoral, São Teotónio, Odemira, Vila Nova de Milfontes, e vemos muita gente, muitos asiáticos que vêm e que circulam, e até às vezes há ali um certo fenómeno que causa alguma preocupação, uma certa ‘guetização’. Porque são pessoas que vêm, muitas delas não falam a nossa língua, e criam-se ali circuitos, até com lojas próprias, e ficam numa situação em que há menos, ou, em alguns casos, quase não há integração. Isso é uma preocupação…
Devia haver então mais fiscalização, do seu ponto de vista?
Não apenas a fiscalização. Penso que há um trabalho, como há pouco dizia, que tem que envolver vários intervenientes, no sentido de conjugar esforços, boa vontade de empresários, de autoridades civis, de autoridades militares, policiais também, que têm um papel importante a desempenhar. Acho que é um trabalho de conjunto que precisa de ser feito e intensificado, embora já há coisas que se vão fazendo e precisam de ser melhoradas e intensificadas.
Sente que o aumento de fluxos migratórios no território estão a alterar o panorama social?
Sem dúvida. Nalgumas zonas da Diocese já se percebe que os que estão a chegar são tantos ou mais do que os residentes. Então, o que está a acontecer, ou vai acontecer muito em breve, vamo-nos tornar uma minoria no nosso próprio território. E não apenas em termos meramente demográficos, mesmo em termos da configuração religiosa, porque é bom não esquecer que nós aqui no Ocidente, e em particular no nosso país, e no Sul do nosso país, temos uma prática religiosa muito baixa. A figura do não praticante é muito forte, é muito corrente. Enquanto que os asiáticos, sejam os muçulmanos, siques, hindus, e mesmo também os católicos que vêm, que no meio disto acabam por ser uma minoria, têm uma outra atitude relativamente ao sagrado. A figura do não praticante não é muito comum nestes povos, nesta gente que está a chegar assim ao nosso território.
Quer isso dizer que os próprios habitantes naturais da região, não só os católicos, mas quem é natural, pode muito rapidamente ser uma minoria?
Eu penso que isso poderá acontecer muito rapidamente, não em todo o território, mas em algumas zonas sim. É uma nova realidade.
Mas falemos especificamente da cidade de Beja: não é uma cidade onde a maioria da população são imigrantes e há dificuldade em preencher os espaços, as habitações?
Na cidade de Beja em particular, não podemos dizer que a maioria sejam imigrantes. Em outras zonas, mais para o sul, mais para o litoral, há zonas específicas em que isso vai começar a acontecer. Em Beja, na cidade de Beja não tanto, embora haja uma presença muito significativa de pessoas que vêm, sobretudo da Ásia, e que sim, são uma presença já muito significativa até quando passamos pela rua, vemos muita gente, até porque, como são pessoas que muitas vezes vivem situações precárias do ponto de vista da habitação, acaba por acontecer que quando não estão em casa a dormir estão na rua.
E alugam facilmente a habitação que pode não ter as melhores condições?
Sim, temos essa informação, que isso vai acontecendo e claro que depois também haverá pessoas que têm interesse em que isto seja assim, porque isto acaba por criar um rendimento extra para algumas pessoas, mas penso que, no fundo, faz parte da mesma problemática da migração, e penso que aí também tem que haver algum cuidado. Ainda há pouco tempo estive em Beja, numa iniciativa promovida por uma empresa ligada ao Alqueva, em que foram convidadas várias pessoas, não apenas daqui do nosso país, como também dos nossos vizinhos espanhóis, em que vieram partilhar boas práticas, no sentido de um trabalho conjunto, um trabalho coordenado entre empresários, entidades governamentais, no sentido de acolher, até no sentido de dar condições de habitação a estes trabalhadores que vêm. Isto é muito importante, porque, antes de mais, acolhemos com dignidade quem vem, mas traz um benefício para o próprio empresário, porque é diferente de ter gente mais estabilizada, gente que até cria uma certa fidelização à empresa, do que andar todos os anos à procura de gente, que depois tem que se integrar. Bem vistas as coisas, podem ser soluções que trarão benefícios para todos.
E no terreno, as instituições de solidariedade, e em particular a Cáritas Diocesana, de que já falamos, são por vezes alternativa ao papel que deveria ser desempenhado pelo Estado?
Eu não sei se serão alternativa, porque de alguma forma, e é bom que haja um espaço para a sociedade civil também intervir nestas questões, e agora no caso da Igreja também.
Mas às vezes o Estado não chega onde é necessário?
Ah, sim, isso sem dúvida, de facto o papel das IPSS, não apenas nesta questão dos imigrantes, como também noutras, é um papel muito importante, e que de facto o nosso país não pode prescindir deste trabalho social que é feito, sem dúvida.
Falemos agora da pastoral: Que diocese encontrou? O seu antecessor, D. João Marcos, disse que a diocese precisava do rejuvenescimento que o próprio já não conseguia imprimir. Deparou-se com dossiês a necessitar de novo folgo?
Sim, a realidade diocesana é uma realidade muito diversificada, e há várias situações que precisam de uma atenção especial. Antes de mais, a Igreja serve para evangelizar, para celebrar a fé, para auxiliar os mais necessitados, são as três grandes funções da Igreja, onde quer que esteja, mas depois há questões estruturais que precisam também de ser cuidadas, nomeadamente questões mais administrativas, ao nível da gestão dos bens, ao nível também da organização da parte dos arquivos. Há todo um trabalho que estou a começar também a pegar com vários colaboradores. Também a questão da comunicação, que é um tema também que me interessa desenvolver e melhorar, estamos a dar alguns passos no sentido de melhorar também esta questão da comunicação, quer ao nível interno, quer também ao nível externo. São alguns aspetos assim, entre outros, que estão assim também sob o nosso cuidado.
Na primeira Assembleia Diocesana, a que presidiu em setembro que plano propôs à Diocese?
Este ano, este primeiro ano, é um ano que está muito marcado naturalmente pelo Ano Santo, portanto um ano marcado pela esperança. E nunca podemos também perder de vista este desejo, este ensejo de anunciar. E aqui até numa lógica que decorre também do Sínodo, tem de ser algo que conte com a colaboração, com a participação de todos, numa lógica de corresponsabilidade, numa lógica de empenho, numa lógica de missão. Isso é algo que tem de estar sempre presente na nossa ação.
E encontrou a Diocese comprometida com esses propósitos, a nível do clero, dos leigos…?
Sim, há um desejo de caminhar, há um desejo de trilhar caminhos de esperança, aliás, é o grande tema deste ano, e penso que sim. Acho que há uma expectativa positiva, e eu também estou com o coração cheio de expectativa e de esperança, e, portanto, vamos caminhando, vamos andando para a frente.