Andamos todos demasiado presos ao chão que pisamos. Atados à vida que criámos ou de que não conseguimos fugir, somos servis à realidade. Entregamo-nos como mártires, num sacrifício que às vezes vem do berço até ao caixão. Sem um grito de contentamento, sem um desafio de olhos, inclinamo-nos à passagem diária da vida, dobramo-nos de mais. E ela puxa-nos como um íman, cola-nos à superfície da terra.
A realidade é uma moldura onde a nossa fotografia envelhece, é um relógio que se traz dentro do pulso, uma gaiola de pássaros cheios de penas por dentro e por fora, um aquário onde somos felizes como peixes às cores.
Deitaram sal por cima das rosas que trazíamos na nossa esperança e depois da aridez das pétalas só sentimos os espinhos entrelaçados, vestindo a nossa existência toda.
Preciso de partir. Diz-se. Ou grita-se. Mas é como quem bebe um copo de água quando a sede é de sorver um mar todo. Principalmente quando a noite se deita ao nosso lado na cama e não há uma luz que se acenda.
Para ir embora é preciso ir sem querer juntar os restos, sem querer deixar a casa caiada, as camas feitas, o chão varrido. Para ir embora basta apenas voltar as costas, pôr outro ânimo nos olhos, outro vigor nas pernas, pôr o passado a um canto como se fosse um brinquedo com o qual já não se brinca. E isto é que é difícil, pois o passado tem um peso, uma cor e um cheiro que se entranharam demasiado em nós.
Temos medo de partir. O desejo é sempre luminoso, mas também é desconhecido e ao menos, cá neste fundo, já conhecemos os contornos da nossa caverna.
– Para onde quer que se vá, vamos sempre ao centro, agarrados às entranhas, carregando dentro de nós a nossa querida inquietação –.
São assim as conversas deste chão que pisamos, as minhas e as que ouço. Todas tão parecidas, tão circulares como um carrossel onde cabemos e vamos todos. Adoçam-se com um pacote de açúcar, mexem-se com uma colher, fumam-se com um cigarro.
As palavras deste chão nascem como erva. Não precisam de ser inventadas.
As palavras do céu, pelo contrário invento-as eu sobre as mesas dos cafés, nos olhos dos amigos, numa toalha de papel, na polpa da noite, numas asas que tenho guardadas no feitio. Com elas fujo do chão. Chego aos figos mais altos, à parte de cima do vento, meço os abismos, sei quantas flores têm os campos na Primavera.
E nesta teimosia de letras esvoaçantes, nunca o raciocínio mudará o que a emoção não quer mudar.
Não sei se concordam, mas esta é uma forma de partir, em voos de pardal pequeno, em solavancos de comboio de brincadeira. Vou ali e já volto. Levo o abecedário dentro de um saco e quando me der a fome, a sede ou o desejo, junto as letras que me derem mais jeito. Ponho-as numa folha e ela é o meu tapete voador.
Píndaro: “Minha alma não aspira à vida imortal, mas esgota o campo do possível.”