Por estas alturas de abril, vem-me sempre à memória uma frase que li muitas vezes no antigo parque infantil do Jardim Público em Aljustrel: “Para os filhos dos homens que nunca foram crianças”. Durante alguns anos lia mas não entendia. Quando percebi, tudo começou a fazer sentido…
Hoje lembrei-me desses tempos novamente. Em meados da década de 70 do passado século, pouco depois da Revolução dos Cravos, as desigualdades continuavam a existir. Existiam os moços e os meninos. Os meninos eram a filha da D. Margarida, do Sr. António, o menino do Lavrador Joaquim, do Sr. Carlos das Finanças, etc. Os moços eram todos os outros. Os moços da Vitória, os moços do Tonico, as moças da Julieta os moços e as moças do Jaquim de Valdoca, etc., etc.. E depois existia algo que nos distinguia. O que calçávamos. Haviam aqueles que usavam ténis Adidas e os que calçavam sapatilhas sem marca, de pano. E depois existiam umas sapatilhas que davam para os dois mundos. Mas já lá vamos.
Lembro-me de ir, moço pequeno, com a minha mãe, muitas vezes à loja do Sr. Alberto. Que ainda existe. Fica em frente ao portão traseiro do Cine Oriental. Ao falar nisto estou a sentir aquele cheiro intenso do café moído misturado com o do bacalhau. Estou a ver aquelas prateleiras de madeira cheias de tachos de esmalte, de pratos de loiça, de fazenda para calças, etc., etc. junto à caixa registadora estão três frascos com rebuçados. Em cima do balcão os medidas de madeira com que se media o grão, o feijão. Com a régua para rasar ao lado, claro. Da parte de fora do balcão estão as caixas de madeira com todo o tipo de comida a granel. E a um canto, bem visível, de forma a chamar logo a minha atenção lá estavam elas. A olhar-me fixamente. A puxarem-me para lá. Tão desejadas com inatingíveis. Já que não as podia ter, pelo menos ia vê-las. Eram elas as que davam para os dois mundos. Para os meninos e para os moços. Para os meninos usarem no dia a dia, pois as Adidas também não eram para estragar. Para os moços eram um sonho, algumas vezes concretizado por altura do Natal ou quando os padrinhos se lembravam que existiam. As Sanjo! Aquelas sapatilhas que ao fim de muito uso já nem forma tinham, mas que para os moços era questão de honra usar até que os rasgões deixassem os dedos de fora.
Felizmente que hoje as crianças, a maior parte delas, são filhos e filhas de homens que se não foram meninos, pelo menos moços foram. E essas crianças, adolescentes, jovens adultos, são o nosso futuro. O futuro do nosso país. Foi para que todos eles pudessem ser hoje esse futuro que o 25 de Abril aconteceu.
O autor utiliza o novo
Acordo Ortográfico