Acho que as pessoas podem e devem sempre voltar ao sítio onde foram felizes.
E se, nesse sítio e nesse tempo, por causa da sua ação, elas tiverem contribuído para a felicidade dos outros, então não restam dúvidas que esse regresso é necessário e urgente.
A identidade de uma região ou de uma comunidade não é uma teoria bonita mas vazia, nem um conceito importante mas sem aplicação prática.
A identidade é o processo que vai da raiz até ao fruto. E essa árvore, que é a nossa vontade, o nosso ânimo e a nossa firmeza, tem de dar fruto em cada geração.
Aos mais velhos cabe explicar como se prepara a terra, como se rega a raiz, como se cuida do fruto. Aos mais novos cabe saborear o fruto e, satisfeitos com a sua doçura, reiniciar todo o processo. De braços dados, de vozes entrelaçadas.
Todas as terras deviam ter um grupo coral porque o grupo coral é a voz da alma de uma comunidade. E nada é mais profundo do que a alma.
O Grupo Coral de Ourique vai regressar ao sítio onde já foi feliz. Os homens que farão parte deste renascer sabem que trazem dentro de si um sentir coletivo, sabem que só eles conseguem dar voz ao silêncio, às cismas, aos amores e aos desgostos, à lonjura, à terra plana, aos montados, à imensidão, às mães que partiram, ao pão, às estevas, à pronúncia.
Há muitos anos, mais precisamente em 2011, senti-me feliz ao escrever um texto sobre o Grupo Coral de Ourique. Hoje, posso, quero e devo voltar ao sítio onde fui feliz.
Têm ainda as palavras fechadas nas bocas quando sobem ao palco. Caminham domingueiros, a preto e branco, com um chapéu de aba longa na cabeça e um lenço ao pescoço.
Como se fossem andorinhas perfeitas, vão solenes, engomados, serenos. A sala é toda feita de silêncio porque os únicos barulhos que se ouvem, os únicos ruídos possíveis, os únicos rumores que se aceitam, são os que aqueles homens levam agarrados às solas dos sapatos. Tudo o resto é silêncio porque o respeito não se ouve.
Vão atrás uns dos outros sem que ninguém vá à frente de ninguém. Alinham-se. Limpam as gargantas. E de repente, uma voz nasce de dentro de um lenço cinzento, irrompe dos lábios e esvoaça sozinha pela sala como um pássaro contente. É o “saída”. E acrescentando “pontos”, as outras vozes, como se estivessem à espera que a emoção desse um sinal, lançam-se no ar agarradas umas às outras. São um bando de pombas brancas que se soltam das algibeiras da noite e nos poisam nos ouvidos. E nós, indefesos e arrepiados, abrimos-lhes as portas do nosso céu para que elas possam voar no azul alentejano dos nossos sentidos. E quando as pombas recolhem aos corpos dos homens maduros, o pássaro solitário volta e com as suas asas de penas deixa-nos saudades no ninho do peito.
Enquanto ecoa a moda, a sala fica suspensa. É tempo de sentir, é tempo de deixar correr este rio de pó e horizontes que temos dentro de nós. É hora de lembrar o passado que nos deu o que somos. É altura de abraçar os nossos avós. É tempo de cuidar das raízes.
Os mais velhos entenderão as modas de uma maneira. Mergulham na memória, descem os degraus do tempo, fecham os olhos e às vezes choram. Com razão.
Os mais novos entenderão as modas de outra maneira. No início talvez se façam fortes, talvez lutem contra as vozes, as palavras, o silêncio, a cadência, o destino, mas depois vacilam, inebriados de lírios roxos do campo, de amores de mãe, de solidão, de marcela, sucumbem lentamente, sentem a planura, os montados, o voo das cegonhas, a musicalidade da pronúncia. Descoberta a sua essência, entregam-se à moda. É que os genes palpitam nos seus corações como borboletas invisíveis.
Entre cada moda, as palmas dizem que sim. Dizem que o grupo coral é a voz das nossas almas, dizem que as suas camisas brancas são a cal, que os casacos pretos são o luto, que os lenços são azeitonas, que as calças são noites sem lua, que os chapéus são sombras frescas em dias de fogo, que as palavras são o miolo da nossa identidade de trigo e bolotas.
O grupo coral não precisa de instrumentos. O cante vem nu, chega em carne viva, apresenta-se despojado de acessórios. Traz um coração de terra, uma garganta de orgulho, uma boca de nostalgia e olhos para chorar.
“Ó águia que vais tão alta, voando de pólo em pólo, leva-me ao céu onde eu tenho a mãe que me trouxe ao colo.”