Nos dias que correm as tradições parecem servir só para ser mostradas, mas a Quinta Feira da Ascensão, ou Dia da Espiga, guarda sempre um poder de evocar sentidos que a distingue dos habituais espectáculos celebratórios.
A festa calha quase sempre em dias luminosos e alegres, “criadeiros” como se dizia, e em muitos sítios nem precisa de ser feriado para interromper as rotinas do jovial mês de Maio. É o dia dos ramos campestres e, tal como o Maio, as Cruzes, e mais tarde o São João, é a celebração da expectativa de vida pujante que nasce da terra, e da exaltante beleza que ela infunde. Recorda a força dos velhos ritos das sociedades agrárias imemoriais, do seu mágico calendário e da sua persistência civilizacional, oculta mesmo nas nossas ingénuas presunções urbanas e modernas.
Citadino a viver longe dos campos e sem motivo prático para os visitar nesse dia a adivinhar-lhes a promessa das culturas, no Dia da Espiga o visitado era eu. Sob a forma de um pequeno ramo com florinhas rústicas entrava em casa de meus pais nesse dia a “espiga” que vinha substituir a anterior. Parecia que o próprio campo descia da sua paisagem magnífica e distante, e vinha entregar-me em mão aquele talismã encantado, para me lembrar, no “exílio”, a terra que me não esquecera, e firmar a minha pertença a ela que eu desconhecia.
Guardado o ano inteiro, o ramo era queimado no dia em que entrava o ramo novo. O embaraço era inevitável. Na cidade, sem o lume a centrar a casa, o ramo ardia na cozinha, no meio de cautelas inábeis. Ardia crepitante, em pequenos lumes rápidos, derramando um fumo lento que deixava no ar o aroma acre e insólito, misto de santidade e bruxaria, que persistia nas divisões mesmo depois de muito arejadas. As poucas cinzas que ficavam iam impiamente por um qualquer cano abaixo, fechando o ritual dessa maneira infame, mas deslocando as atenções para o viçoso ramo novo que chegara.
Antes de arder, o ramo velho era já só um feixe seco e baço. Perdera primeiro, em poucos dias ou horas, as papoilas, a flor do Amor ardente, coisa exaltante e, mais ainda, fugaz. As outras flores, amarelas, brancas e azuis, muito mirradas e descoloridas, deixavam pelo menos um despojo de si a assinalar a alegria que haviam simbolizado em jovens, e que, mesmo perdida, não esquece. O pequeno ramo de oliveira, esse, pouca diferença fazia. A folha miúda enrolara um pouco e a seu verde cinza ganhara uma velatura metálica, mas estava sempre inteiro e firme como uma ordem: a de não ofendermos nunca a paz, e de fazê-la prevalecer sempre para além do ciclo do tempo e dos invernos da alma. Quanto às espigas secas, haviam ganho tensão, cor e sobressaíam, parecendo capazes de assim se manter por toda a eternidade a lembrar o pão e, através dele, lembrar o trabalho.
O ramo ardia, legando o amor, a alegria, a paz e o trabalho ao ramo que chegara e, mesmo esquecida a observação da hora, por um momento, suspenso e feliz, o tempo estava a começar novo outra vez. Como agora.

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O espetáculo de teatro culinário “Comer com os olhos” é apresentado neste fim de semana, dias 1 a 3 de Dezembro, em Odemira, com o