Como a maior parte dos meus concidadãos, passei pelas diversas fases de aprendizagem e pelas muitas etapas do processo de crescimento, passei vergonhas, senti glórias, fui aproveitando a escola, os livros e os ensinamentos, ouvi os mais velhos, concordei com eles, discordei deles, o meu cérebro conseguiu perceber a abstração, a filosofia, as religiões, o preço da liberdade e da democracia, sei que a democracia nunca é uma coisa relativa, pois ela é em si mesma um valor absoluto, sei falar sobre algumas coisas, tenho noção da fragilidade e da fugacidade da vida, conheço o local e o global, viajo, mas amo as minhas raízes, tenho uma memória ainda aceitável, vou fazendo a minha parte, participo nas coisas sem princípios maquiavélicos, respeito a opinião contrária, aprendi com a maior parte dos erros, outros ainda os cometo, tento não complicar, raramente não dou opinião, o que às vezes significa complicar, na maneira de ver dos outros, procuro estar atento, não tenho a mania da perseguição, mas não deixo que me comam as papas na cabeça.
Pago religiosamente os meus impostos e os meus empréstimos bancários, respeito as leis e as normas, sou um bom vizinho, defendo a igualdade de género, voto sempre, obtive o meu emprego através de concurso, raramente falto ao trabalho, ensino a importância do 25 de Abril, não deito lixo para o chão, levo os cães pela trela e o carro à inspecção, não dou despesa ao Estado, nunca bati em ninguém, nunca dei trabalho a nenhum tribunal, nem à Polícia, nem à GNR.
Sou portanto um cidadão comum que escolheu um caminho e uma forma de ser e de estar resultantes de uma aceitável educação familiar, do ordenamento jurídico português e de um investimento, globalmente positivo, do Estado na sua formação e conhecimento.
Posto isto, eu pensava que era um cidadão mais ou menos lúcido e dotado de uma razoável capacidade de interpretação da realidade que me circunda, mas afinal não sou.
Não sou, porque já não percebo nada do que se passa. Os partidos políticos, em maior ou menor grau, dependendo dos tacticismos, alguns políticos, algumas instituições e algumas figuras públicas vivem num delírio constante e provocam uma vertigem colectiva, promovem ódios, inventam verdades, usam discursos que ninguém percebe, dizem uma coisa e o seu oposto, dizem o que lhes apetece, defendem os seus interesses, rebentam fortunas, semeiam corrupção, atribuem-se reformas e mordomias, atribuem a si o que negam aos outros, saltitam de função em função, deixam o caminho aberto para os seus, protegem os seus, têm os melhores advogados, riem-se na nossa cara e fazem tudo sem escrúpulos e com total impunidade.
A verborreia é cada vez maior, a manigância institucionaliza-se, os esquemas montam-se, a corrupção banaliza-se. E nós, os cidadãos comuns, contribuintes, sustentáculo do Estado, ficamos no fim da escala, limitados ao voto de vez em quando, confortados com uma palmadinha nas costas, manobrados para ficarmos quase impávidos e quase serenos. E se falarmos, se tentarmos mostrar o nosso nojo, somos logo apelidados de radicais.
Há pessoas e instituições neste país que estão a minar alguns fundamentos da democracia e os danos podem ser irreparáveis. E depois não se admirem que as pessoas se fartem, não achem estranho que haja abstenção, não se surpreendam que apareçam saudosismos e extremismos.
Eu não gosto do que vejo, do que ouço e do que leio, portanto não posso ignorar.
Há alturas em que este país não faz sentido nenhum e eu me sinto um tonto espectador de uma péssima peça de teatro do absurdo.
“Teatro do absurdo: É uma forma do teatro que utiliza, para a criação do enredo, das personagens e do diálogo, elementos chocantes do ilógico, com o objectivo de reproduzir o desatino e a falta de soluções em que estão imersos o homem e sociedade.”