Envelhecer é Tramado!

Napoleão Mira

Escritor

Um homem chegar a velho, é mesmo fod…!
Era este o pensamento que me assaltava quando, escoltado pela minha filha Etelvina, a mais nova e única sobrevivente de uma prol de quatro rebentos, que me acompanhava àquela que viria a ser a penúltima morada deste farrapo ambulante em que me tornei.
O velho e gigantesco edifício plantado à minha frente ainda ostentava a magnitude para que fora inicialmente destinado. Ser convento. Depois foi quartel militar, escola, tribunal e até refúgio para esses deserdados da sorte a que, os que têm teto, chamam “sem abrigo”.
Agora, depois de largos anos de abandono, sofrera obras de vulto e fora convertido em Estrutura Residencial Sénior – como anunciava a placa colocada ao lado esquerdo do portão –, que o mesmo é dizer: Lar de Idosos, Asilo, Casa de Velhos ou mesmo Depósito de Inúteis.
Quando, em dores de dobradiça, o imponente pórtico rangeu atrás de mim anunciando que se fechava ao mundo, também senti que aquele era o momento em que, em vida, me despedia dela e era remetido ao silêncio, aos gemidos cavados e longínquos, ao permanente cheiro a urina, aos devaneios patéticos da mente ou à comida sem sal a que estava condenado.
Não sei se vos diga, se vos conte. As coisas que pensa um homem no ocaso da existência. Ao percorrer os sombrios corredores que conduzem às antigas celas, agora transformadas em quartos, dou comigo a cismar que gostaria de partir para o “caiado” antes de enlouquecer de vez.
Não sei se por defeito ou prática profissional, a funcionária que me acompanhava aos novos aposentos fazia-o em voz excessivamente alta; tão alta que tive de lhe dizer, meio a sério meio a brincar, que era apenas velho e que, ao contrário de outras, as minhas faculdades auditivas continuavam a ter um excelente desempenho.
A minha Etelvina, desculpando-se com o facto de estar atrasada para o trabalho, nem o percurso do portão à cela se dignou a fazer.
É por isso que digo que um homem chegar a velho é fod…! Somos um encalho para os que nos rodeiam, incluindo àqueles a quem tudo demos: os nossos filhos.
À medida que os passos mudos e arrastados avançam pelo lajeado intemporal do velho edifício, ocorrem-me certas passagens daquele que foi o meu percurso terreno.
Quando pousei na cama o espólio permitido, este vinha em forma de mala de viagem para passageiros de companhia aérea de voos baratos, ou low cost, como agora se diz, quando temos preguiça de falar na língua materna. Em suma: oito quilos e nem mais um grama!
Retirei os retratos dos que me são mais queridos para me poder lembrar das suas feições e, enquanto conseguir ludibriar o sacana do alemão que dá nome à fatídica doença, todos os dias repetirei os seus nomes, beijarei as suas fotos uma a uma e… esperarei! Esperar é a última coisa que me resta.
Sei que nas poucas visitas que me farão, enquanto espero, me dirão estar cheios de pressa, que não vão poder esperar pela hora do lanche; que a vida já não é como foi no meu tempo; que agora se vive uma lufa-lufa que me dizem dar com eles em doidos. Rir-me-ei então como os desvairados, só para lhes ver a cara de parvos que hão de fazer. Como se eu não soubesse que – desde o momento que cruzei aquele portão carregando a cabeça em cima dos ombros – sou apenas um cadáver adiado, um esqueleto ambulante, uma sobrecarga na vida dos outros.

Crónica que deu origem ao conto “Viagem Ao Centro da Terra”, recentemente publicado no livro de contos Minas, publicado pela ASSESTA.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Em Destaque

Últimas Notícias

Role para cima