Nos Anos 50 do passado século, Entradas registava o seu maior crescimento demográfico. Havia por essa altura perto de 2.000 pessoas a residirem por estas bandas.
As famílias eram invariavelmente numerosas e a vila transbordava de juventude. A maioria destas famílias tinha na sua prole quatro, cinco ou mais filhos para sustentar, tarefa difícil de levar a cabo em terra de paupérrimos recursos e onde os trabalhos eram quase sempre de carácter sazonal, logo com largos períodos de carência onde a imaginação era levada ao limite para alimentar tanta boca ávida de pão.
Os moços e moças assim que ganhavam corpo eram encaminhados para trabalhos que não eram proporcionais às suas fracas figuras. No entanto, e como é próprio da juventude, a diversão e o catrapisco namorativo davam-lhe ânimo para, depois de longas jornadas de trabalho, ainda irem arrastar os pés cansados nos bailes tradicionais que por aqui se realizavam. Estes bailes eram realizados em casas particulares com duas intenções: para uns para aconchegar o parco orçamento familiar através das entradas e das vendas de petiscos, para outros com uma intenção mais hábil que consistia em “ fazer solo”, ou seja, como o chão das casas era em terra batida, estes ocasionais “balhos” serviam para calcar o chão da divisão pretendida, matando-se, assim, dois coelhos de uma só cajadada.
Nesse tempo, haviam dois bailes com garantia de casa cheia: eram os “ balhos da Patanisca” e os “ balhos da Torradinha”, assim conhecidos porque durante o serão dançante havia um convite formal ao consumo, aqui chamado de “garvanço”, que consistia em comer pataniscas, ou torradinhas, consoante o organizador da função.
Como a eletricidade ainda era coisa de que nem se ainda ouvira por aqui falar, a “balhação” era feita à luz de candeeiro a petróleo, o que presumo que daria ao ambiente um certo toque romântico, propício à troca de olhares mais cúmplices ou ao jogo das sombras decalcadas nas paredes. Quando não havia flautista ou acordeonista, os bailes eram cantados, ou seja, bailava-se, ria-se e cantava-se ao mesmo tempo e, segundo testemunho dos que me são próximos, a diversão não deixava de estar garantida por tão importante falha.
Por esse tempo, moço que se prezasse trazia nos bolsos dois objectos importantes: a navalha e a “flaita”. Navalha porque faz parte da indumentária de qualquer alentejano que se preze e “flaita” para animar musicalmente bailes ou mesmo outros períodos de ócio, nomeadamente na pastorícia, onde o tempo abunda e o bulício da solidão convida ao pincelar de sons a paisagem transtagana.
Por essa altura havia em Entradas um acordeonista de três acordes, de seu nome Manuel do Carmo, que animava os “balhos” de então. Este músico taberneiro, percursor da música brejeira hoje tão em voga, vincava no fole do seu instrumento letras que ainda hoje em Entradas são recordadas e de que vos deixo breve exemplo, para que possam aquilatar da veia poética deste taberneiro, músico e poeta:
Minha sogra é forneira
Meu sogro vai à lenha
Minha vaca já pariu
E a minha mulher está prenha
Ou então o seu grande sucesso que ainda hoje é cantado:
Balhem putas, balhem putas
Balhem putas dum cabrão
Quanto mais vocês balham
Mais putas vocês são
E destes devaneios se faziam as “Entradanças” de então. Mas esta não era a única modalidade dançante desses tempos. Contava-me o falecido amigo Luís Fernando, exímio contador de episódios rocambolescos, que, por esse tempo, muitos homens cá da terra tinham por hábito dançar nas tabernas depois destas fecharem. O curioso é que o faziam com outros homens.
Passo a contar: talvez motivados pelo isolamento, pela falta de trabalho, pelos vapores etílicos ou mesmo pela pura necessidade de diversão, alguns (muitos) homens da minha terra, depois da taberna fechar – e neste caso refiro-me à minúscula “venda” do Ti Luís Santiago – os clientes habituais afastavam e arrumavam os bancos e dançavam uns com os outros, com a particularidade de terem o seu par fixo.
Estes bailes eram geralmente cantados com quadras improvisadas no momento, tendo como tema o gracejo, a chacota ou ainda os defeitos ou qualidades de cada um dos intervenientes, o que fazia com que todos os elementos da função só e unicamente a eles dissesse respeito.
Sempre achei esta história uma das mais deliciosas que ouvi da boca deste meu amigo, até porque consigo visualizar as pessoas e o local, dando comigo a pensar na motivação de tão contra natura atividade. E caso a transportasse para os dias de hoje, seria facilmente censurável, ao passo que nesses idos anos era tida com a maior das naturalidades.
Depois veio um longo desvanecer dessas atividades que entretanto se tinham mudado para a Casa do Povo ou para a Sociedade, até que, se excetuarmos as festas tradicionais (onde cada vez se baila menos), os “balhos” passaram a fazer parte dum passado que sendo recente já nos fica tão distante.
Eis senão quando, há 19 anos, aparece em Entradas, trazidos pela autarquia castrense e apoiado pelas estruturas locais, um festival a que foi dado o sugestivo nome de Entrudanças, que consiste num programa oficinal de danças de vários géneros e tempos, onde locais e forasteiros (que são cada vez mais) aprendem durante o dia e praticam à noite nos bailes levados a cabo no Centro Recreativo de Entradas.
Vêm em bandos de vários locais do país e estrangeiro esta maralha alternativa, simpática e culta, que empresta a Entradas durante alguns dias uma vida e uma cor que fazem da minha terra um pequeno império da dança.
O programa é riquíssimo, misturando oficinas de danças europeias com africanas ou brasileiras. Do “cardápio” fazem parte ainda a interação dos forasteiros com as culturas locais, mesclando o cante com a gastronomia, numa fusão que só enriquece quem aprende e quem ensina. Ainda por cima, este festival tem por data a semana do Entrudo, fazendo com que Entradas seja a “capital” do Carnaval alternativo a sul do Tejo e não só.
Ocupam campos de jogos, armazéns e casões, onde pernoitam nas suas tendas. Enchem restaurantes, cafés e demais estabelecimentos, gerando um inusitado movimento para tão pacato meio. Quando partem levam consigo o desejo de voltar e trazer mais amigos no próximo ano, o que de resto tem vindo a acontecer a cada ano que passa.
De parabéns estão a organização (Associação Pé de Xumbo, Câmara de Castro Verde e Junta de Freguesia de Entradas), que em boa hora trouxe para Entradas esta extasiante experiência, sem nunca esquecer o trabalho dos voluntários da Sociedade Entradense e muitos outros que deram o melhor de si para que revivam os “Novos Balhos da Patanisca e da Torradinha”, agora revisitados, reorganizados e melhorados em moldes deste tempo.