A Viola Campaniça e o cante a despique e baldão

José Francisco Colaço Guerreiro

Fundador da Cooperativa Cortiçol e dos grupos corais “As Camponesas” e “Os Carapinhas” de Castro Verde

VIOLA CAMPANIÇA
Passados os tempos em que a Viola Campaniça vibrava as suas cordas ao toque de muitas mãos, sendo presença muito desejada e quase obrigatória em festas e arraiais, chegou a estar quase esquecida, era dispensada, perdeu a fama e a rama.
De facto, desde épocas recuadas e até meados do seculo passado , a Viola Campaniça dava prestígio a quem a tocava, enchia de brio os mestres, fazia bom lugar àqueles que dela tiravam sons e harmonias para acompanharem cantadores, marcarem o passo nos bailes e animarem ambientes vários.
Por isso, os casamentos e baptizados somavam pontos aqueles que tinham tocadores. Também os cantos de baldão e despique eram melhores e mais elogiados quando tinham uma campaniça a retenir. Mas, como tudo muda, o prestígio da viola perdeu-se pouco a pouco, sendo substituída nos bailaricos pêlos acordéons, caiu em desuso e deixou de despertar a atenção dos mais jovens que não queriam empenhar-se no trabalho da sua aprendizagem.
E assim, no final da década de oitenta, contavam-se pêlos dedos de uma mão, os tocadores activos, praticantes ainda da arte do toque com alguma regularidade.
Foi neste contexto que privámos pela primeira vez com a Viola Campaniça e conhecemos alguns tocadores já idosos, em fim de carreira, desmotivados, com os instrumentos descordoados, sem afinação, sem uso.
Deles destacamos os mestres Francisco António e Manuel Bento que embora já não fizessem actuações regulares, mantinham ainda um elevado nível de mestria e uma paixão imensa pela arte. E foi com eles que a Cortiçol – Cooperativa de Informação e Cultura de Castro Verde, constituiu o primeiro “ Grupo de Violas Campaniças” que de modo incansável e militante percorreu múltiplos palcos, encantando quem pela surpresa era apanhado.
A beleza intrínseca das vozes e dos trinados que ofereciam, abriam espaço à admiração fácil e assim, susteve-se em boa hora, o esquecimento total da Campaniça, dando tempo a que aparecessem novos tocadores, alguns integrados em grupos de musica popular e outros dedicados em exclusivo àquele instrumento maneirinho e de cintura delicada.
Agora, dão-se passos sérios e firmes no ensino do toque da Viola, bem assim como, na aprendizagem da sua construção.
Estamos no bom caminho, aberto pelo pioneiro Pedro Mestre que tem sabido elevar o instrumento a um bom nível de prestígio e consideração pública através de espectáculos em lugares de grande craveira e com insistentes coberturas televisivas.
No concelho de Odemira, já se iniciou um trabalho de fundo com vista à divulgação e ensino da Viola, assim como em Castro Verde há anos que são dadas aulas de toque e construção, estando também prevista a abertura de um centro de Valorização da Viola Campaniça.
Este quadro permite-nos depositar esperanças no futuro da nossa viola com o aumento do número dos seus tocadores que se antevê, devendo, todavia, apostar-se na generalização de aulas desde o ensino básico ao secundário.
Por outro lado, é decisivo para a valorização e afirmação da Viola Campaniça que o Conservatório Regional do Baixo Alentejo lhe abra as portas e passe a ser um agente activo na sua divulgação, pois, não se entende, como até aqui ainda não houve sensibilidade nem vontade para se colocar a nossa viola ao mesmo nível dos outros instrumentos musicais que naquela instituição se ensinam.

CANTO DE IMPROVISO
No que concerne ao canto de improviso, que entre nós se resume praticamente ao Baldão, já que as demais praticas tradicionais sucumbiram ao passar dos anos, importa olhar para ele com todo o cuidado se quisermos ver garantida a sua continuidade no futuro. A modernidade ditou o fim dos bailes de roda em que de improviso se faziam e entoavam cantigas de amor, de simpatia ou de azedume, para seduzir ou para rivalizar.
Para imaginarmos como se processavam tais bailes e qual era a sua ambiência, temos de colocar candeeiros a petróleo no lugar da iluminação eléctrica , num cenários de espaços acanhados e emprestados, limpos e enfeitados pêlos próprios festeiros, onde se juntavam os pares, as mães das damas para imporem respeito e ali por perto, andavam também os pais das moças casadoiras para acudirem nos casos maiores. E quando a páginas tantas se armava o baile, davam-se as mãos e entrava-se na roda seguindo os preceitos. Às cantigas abaladas por este ou por aquela, respondia-se também cantando, no improviso do flagrante, mas sempre fazendo valer a sua razão.
Ainda é conhecida a picardia gerada algures por um forasteiro que em certo baile cantou atrevido:
Um copinho, dois copinhos/ Três copinhos de aguardente/ As moças desta terra/ Fazem andar um homem quente
Não tardou, então, em elevar-se a voz grave de pai ou mano da moça presente que sentenciou:
Um copinho, dois copinhos/ Três copinhos de licor/ Levas com um banco nos cornos/ Passa-te logo o calor
Mas havia também momentos de paixão não sustida, como aquele em que noutro baile, um jovem namorador, logo a seguir à cantiga da pretendida, se confessou cantando :
Tu és a eiró mais linda/ Que anda no pego da lança/ Enquanto não fores minha/ O meu coração não descansa
Também há lembrança de outra cantiga de amor cantada em certo baile à chegada de rapariga cobiçada:
Ora viva para quem viva/ Quem agora aqui chegou/ Estava para me ir embora/ E agora já me não vou.
Mas, progressivamente, os bailes de roda foram substituídos pelos bailaricos ao som de flaita e depois de concertina e acordeão e assim, acabou-se o ambiente para se fazerem ouvir as vozes e em consequência, perdeu-se o improviso das cantigas.
Igualmente, a corrida do tempo fez calar os poetas repentistas que à mesa, nas vendas, cantavam à desgarrada.
E era também nas tabernas que se cantava a despique, cante de improviso belicoso e cheio de regras e ajustes que facilmente levavam à desordem pela discussão gerada sobre o “ponto” pisado ou não.
A vinda das telefonias, mesmo antes das televisões, calou o despique nas vendas, a mando dos taberneiros, por recearem e precaverem os desacatos habituais no decorrer deste canto que chegou a ser praticado com alguma vulgaridade no Alentejo plano.
Nas zonas serranas dos concelhos de Almodôvar, Odemira e Ourique surgiu e vingou um canto semelhante, mas, absolutamente distinto, na musicalidade, na métrica da poesia e nas regras pelas quais se regia e ainda rege a sua prática.
Também preferencialmente acompanhado pela viola campaniça, o Canto de Baldão é menos exigente para os cantadores quanto às regras pelas quais se pauta a sequência das cantigas, deixando total liberdade à sua construção, sem a condicionante da não repetição do “ponto”, o que evita discussões no decorrer da sessão com a aplicação de normas sancionatórias, como o pagamento de uma rodada de copos de vinho aos parceiros da roda.
Assim, finda a tradição dos bailes cantados, da desgarrada, acabado o costume se se intercalarem cantigas de improviso no meio do próprio cante coral às vozes e perdido inexoravelmente o canto a despique, resta-nos olhar agora com atenção, apoiar e dinamizar o Canto de Baldão pelo seu valor intrínseco e pela circunstancia de o mesmo representar o ultimo modo de improvisar cantando que temos no Alentejo.
Uma vez que podemos considerar que o seu acompanhamento musical está salvaguardado pela renovada pujança da Viola Campaniça, todo o cuidado e atenção devem incidir sobre os mestres cantadores, através da sua motivação, para que não abandonem a arte e sirvam de modelo de aprendizagem para novas iniciações.
Tal acontecerá se existir uma política local de seguimento e de valorização do cante repentista enaltecedora também do papel desempenhado pêlos cantadores, fazendo com que se sintam elogiados e admirados pela função relevante que desempenham enquanto portadores e guardiões de uma arte singular.
Já que o Baldão não tem energia vital para se suster a si próprio, gerando cantos espontâneos, devem os mesmos ser sugeridos e apoiados, assim como devem ser organizados encontros de cantadores abertos a quantos quiserem, com a devida publicitação.
A marcação de cantos regulares e itinerantes em locais apropriados, como já vai acontecendo, é outro modo de incentivar os cantadores e de se criar um publico próprio amante desta expressão cultural tão peculiar.
Contrariamente àquilo que defendemos para a Viola Campaniça, tendo como boas as escolas de ensino e de construção do instrumento, não nos parece ser útil ou adequada a criação de igual sistema para a aprendizagem do Baldão.
Consideramos que a verdadeira escola para a aprendizagem e iniciação do Baldão é assistir a cantos, pregar o olho e afinar o ouvido naquilo que se passa nas rodas de cante.
Só isso aguça o entusiasmo e leva o assistente a superar-se no fazer e no cantar cantigas perfeitas. Por exemplo, recordo-me bem de ver o Manuel Graça seguindo o girar das vozes em vários baldões, de fora, atento, medindo as suas próprias forças, mas ainda sem coragem de entrar em campo.
É difícil ter-se o sangue frio para se incluir no conjunto de vozes batidas, pois precisa-se conjugar a capacidade de cantar com o saber fazer poesia e ainda, esta ser repentista. Mas com persistência vencem-se os receios, cresce a alma para se cantar, apanha-se o estilo, aperfeiçoam-se as cantigas e depois ganha-se um gosto especial por se ser capaz de deitar cá para fora, as ideias sentidas com palavras rimadas.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Em Destaque

Últimas Notícias

Role para cima