Em 2020 a Empresa Municipal de Água e Saneamento (EMAS) de Beja cumpre 100 anos de trabalho na gestão da água no concelho. Um século de muitas dificuldades e grandes conquistas, como refere o administrador-executivo da empresa em grande entrevista ao “CA”. Quanto ao futuro, Rui Marreiros não esconde que são muitos os desafios que a EMAS de Beja tem pela frente no curto e médio-prazo.
Passados 100 anos, qual a maior marca da Empresa Municipal de Água e Saneamento (EMAS) de Beja no concelho?
Podemos dizer que o próprio crescimento e evolução da cidade foi sendo feito a par-e-passo com o crescimento da empresa. Ou seja, o grande salto e a grande evolução que Beja deu em termos de crescimento ao longo destes 100 anos foram sempre acompanhados pelos serviços de águas. Os serviços de água são sempre uma componente importante da comunidade, que evoluem ao mesmo tempo que a malha urbana vai evoluindo. No caso de Beja, se calhar esse destaque foi mais acentuado porque – primeiro como serviços municipalizados e depois enquanto empresa municipal – se profissionalizaram os serviços e a resposta que foi sendo dada também foi sempre positiva, antecipando os desafios para aquela que sempre foi a maior entidade gestora da região.
Ou seja, existe uma marca de inovação associada à EMAS?
É isso que tentamos fazer. As equipas estão motivadas e as pessoas também esperam que estejamos à frente do nosso tempo. Hoje temos novos desafios, como as alterações climáticas, com destaque para as suas consequências em matéria de secas prolongadas, e a EMAS de Beja e o seu corpo técnico acabam – até de forma natural – por serem vistos como uma referência, mas também como uma segurança para dar a resposta certa em situações de maior complexidade.
Qual o maior desafio enfrentado pela EMAS nestes 100 anos?
Houve vários! Uma fase marcante foi a grande infraestruturação que foi feita exatamente quando a cidade começou a ter esgotos, drenagens residuais no centro histórico e abastecimento domiciliário de água. Foi um processo pioneiro em relação aos outros municípios [da região] mais uma vez. Depois houve outra fase marcante, que eliminou os problemas de escassez [de água] e já então de seca, que foi a ligação à barragem do Roxo. Foi um marco essencial! E nos últimos 20 anos tivemos mais intervenções de fundo, a reestruturação da forma de abastecimento de água à cidade, em 2012, através da construção de três grandes anéis que permitiram a diferenciação em patamares de pressão e melhorar muito o abastecimento de água. Uma intervenção, diria eu, que se complementa com aquilo que estamos a passar agora, em que verificamos uma diminuição brutal do número de roturas. Mais recentemente a ligação ao Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva e a construção da nova Estação de Tratamento de Águas da Magra marca mais um virar de página para o futuro coletivo da cidadã, do concelho e da região.
Qual a principal mais-valia para Beja em ter uma empresa como a EMAS?
Há várias características que nos distinguem positivamente… Desde logo a garantia absoluta da qualidade da água! Isso é indesmentível e o facto de termos o nosso próprio laboratório faz com que controlemos em tempo real aquilo que distribuímos. E depois o acompanhamento que vamos fazendo da expansão da cidade em termos de infraestruturas, assim como a rapidez de intervenção. Hoje temos capacidade de resolver problemas no próprio dia, problemas estes que são cada vez menos porque conseguimos prever e antecipar as situações de forma mais adequada.
Olhando em frente, qual o maior desafio que a EMAS tem pela frente?
O desafio é enorme! Termos chegado a esta situação de conforto dá-nos capacidade de olhar para o futuro, até porque dependem de nós milhares de pessoas e atividades económicas fundamentais para o concelho. A água hoje também se caracteriza como um bem essencial para a economia e a nossa obrigação é, também, ter uma infraestrutura que esteja preparada para dar resposta e não impeça o crescimento económico de Beja.
Na EMAS de Beja lideramos processos e marcamos a agenda em determinadas áreas. Nem sempre é fácil, mas estamos confortáveis com essa responsabilidade.
Mas que desafios?
Diria que nós, em termos futuros, temos três grandes linhas com que nos preocupar. A primeira tem de ver, desde logo, com a infraestrutura. Já temos uma situação de conforto que é estarmos ligados ao Alqueva, a que se junta o facto de Beja ser a única capital de distrito que tem três opções de abastecimento. Estamos ligados ao Alqueva via-ETA da Magra, mantemos a ligação à barragem do Roxo e temos um conjunto de captações subterrâneas na zona envolvente da cidade. Portanto, do ponto de vista da disponibilidade de água, estamos relativamente confortáveis. Mas além destas origens, precisamos de reforçar a garantia de segurança relativamente a trazer toda essa água para dentro da cidade. E o que queremos fazer é duplicar a capacidade de entrada de água na cidade, para termos uma alternativa em caso de colapso da primeira ou perante um aumento da solicitação de água!
Como pretendem fazer isso?
Para isso precisamos de duas coisas, que são os desafios em termos de investimento futuro na infraestrutura. Primeiro uma nova ligação à ETA da Magra, que nos permita colocar água na cidade por circuitos alternativos aumentando as redundâncias em caso de anomalia parcial dos sistemas. Simultaneamente, temos de fazer alterações naquele que é o esquema de distribuição de água dentro da cidade, para nos permitir, em caso de necessidade, fazer trocas entre reservatórios, inverter circuitos, ganhar alternativas, ou seja, aumentar ainda mais as possibilidades e alternativas de abastecimento de água em cenários complexos.
Isso implica grandes obras na rede?
Uma vez que são condutas de grandes dimensões serão obras mais localizadas. E diria que quando tivermos isto feito estaremos numa situação perfeitamente confortável para as próximas décadas, talvez até para os próximos 100 anos. Temos acesso às origens, temos forma de colocar água na cidade em mais de uma alternativa, e ficamos com a capacidade de a distribuir na cidade e em várias freguesias de várias formas.
Para quando este investimento?
Estamos a preparar a operação em conjunto com as Águas Públicas do Alentejo que fazem a gestão e a exploração da ETA da Magra que será a origem desta ligação à cidade de Beja. Nesta fase estão praticamente concluídos os projetos e as estimativas em termos de custos. Na verdade, a procura de formas de financiamento para o projeto está já no terreno também.
Financiamento comunitário?
Temos várias alternativas, até porque neste momento, em termos financeiros, a nossa situação é bastante confortável e robusta quando comparada com há dois ou três anos atrás. Isso permite-nos ter uma relação com a banca comercial privilegiada e sem qualquer problema de acesso ao crédito. Há a expectativa de algumas linhas do Banco Europeu de Investimento serem direcionadas para estas áreas, bem como a reprogramação de alguns dos fundos disponíveis neste momento nos programas operacionais dirigidos para o setor. E temos depois, eventualmente, outras formas de consegui colocar o projeto no terreno, onde cabem parcerias com a alta – através da Águas Públicas do Alentejo – ou por via de processos de agregação entre municípios, que permitiriam trazer um grande nível de investimento. Temos, portanto, várias alternativas para que seja possível ter essa obra concluída em 2022/2023. Assumimos o compromisso de criar condições para que isso aconteça possa acontecer tão breve quanto possível.
Tem noção de quanto custará esse investimento?
Nesta área estamos a falar de um investimento que poderá rondar os três milhões de euros, especificamente nestas duas intervenções. Mas deixe-me acrescentar que além disto temos outra responsabilidade –para se fazer ao longo do tempo – que é a renovação da rede. E, portanto, queremos aumentar a taxa de renovação! Obviamente que temos zonas da rede de distribuição com 30 ou 40 anos ou mais e cada uma delas precisa de, paulatinamente, ser substituída. Mas isso fazemo-lo em permanência, com mais ou menos intensidade, consoante a nossa capacidade financeira.
Falou de três grandes desafios. Sendo as infraestruturas o primeiro, o segundo será…
Tem a ver com a alteração do nosso posicionamento face à gestão integral do ciclo da água que achamos ser importante e decisivo. Por exemplo, temos um grande desafio em Beja e nas aldeias rurais que são as linhas de água em meio urbano. Tradicionalmente estas linhas de água são geridas pelos municípios e nós achamos que temos – pelo nosso know how, pelos nossos equipamentos e pelos conhecimentos técnicos – capacidade para retirar valor da gestão dessas linhas de água e transformar aquilo que muitas vezes são canais de circulação de água a céu aberto em zonas com um enquadramento paisagístico, ao mesmo que servem de drenagem de águas pluviais dentro da malha urbana. Há experiências muito interessantes sobre esta matéria no estrangeiro, mas também em Portugal. Como nós já temos a competência delegada de gestão das águas pluviais, estamos a preparar uma proposta que pode ir neste sentido para que a EMAS posso fazer a gestão da rede hidrográfica dentro da malha urbana do concelho assumindo o conceito de gestão integral da água. De qualquer forma é um processo que terá sempre de passar pelo escrutínio do regulador para o setor, a ERSAR, eventualmente parecer do regulador setorial da área do ambiente, entre outros. Mas ainda dentro desta linha, num contexto de inovação e de antecipação do futuro, há outra questão em estamos a tentar trabalhar – esta ainda mais ambiciosa –, que é termos um novo tipo de água.
Como assim um “novo tipo de água”?
Já tivemos um projeto embrionário que, entre aspas, visava vender água da chuva. Hoje temos problemas ao nível da escassez de água e é mais ou menos evidente que determinado tipo de utilizações que se fazem da água podem ser feitos com outro tipo de água. Hoje fala-se muito na reutilização de águas residuais, na dessalinização, todas naturalmente com vantagens e desvantagens (mas seguramente de difícil concretização na nossa região) mas o aproveitamento da água da chuva em determinadas situações pode ser muito eficaz. Por exemplo, na lavagem de ruas. Não faz sentido utilizar água tratada para consumo humano, que tem um custo de produção relativamente elevado, em áreas menos nobres. Diria que a procura de novas utilizações para a água faz parte do nosso objetivo futuro. Tudo isto pode ser feito sem grandes investimentos em infraestruturas.
E como fariam a recolha dessa “água da chuva”, para posterior utilização?
Associando-a por exemplo à gestão integral do ciclo urbano da água com inclusão das águas pluviais e a gestão das linhas de água, criando pequenos lagos mais ou menos artificiais para regular o escoamento e criar reservas para a rega de jardins, por exemplo. Nós estamos numa região em que o aproveitamento de água faz todo o sentido! Aliás, se conseguirmos substituir a rega de alguns espaços verde com água tratada por outro tipo de água, obviamente que estamos a ter um ganho em termos de poupança do recurso, mas também um ganho financeiro.
Falta o terceiro desafio.
É um desafio que acaba por estar relacionado com os dois anteriores, sendo um tema que hoje está na agenda e em que nós estamos na primeira linha. Tem que ver com a sustentabilidade ambiental e a sensibilização de todas para estas questões, com o foco centrado nas alterações climáticas e a economia circular. Foram dois temas que entraram nas agendas de forma estonteante e que para nós têm um peso muito importante. Alterações climáticas no Baixo Alentejo no sector da água têm duas características fundamentais: seca – e para responder à seca estão aquelas questões de que falámos – e precipitação intensa concentrada em pouco tempo, com situações de cheias – e também temos uma resposta preparada nesse sentido. Há outra dimensão, a que também nos dedicamos, a sensibilização das pessoas para criar ou reforçar a consciência em termos ambientais. No que toca à economia circular é, no fundo aqui, onde se enquadra a utilização de um produto que, antes era considerado um subproduto, como é a água residual ou a água da chuva e passa a ser encarado como matéria prima.
Primeira parte da entrevista publicada a 12 de Junho, no suplemento “EMAS de Beja: Uma empresa municipal, 100 anos de história”, distribuído com o “CA”