Na segunda parte da entrevista concedida ao “CA”, o administrador-executivo da EMAS de Beja fala sobre o futuro da empresa, mas também do sector, defendendo uma nova visão para a gestão deste recurso.
“Uma questão que defendo desde há muito, um cluster da água que permita ter uma visão global, mas uma gestão regional com políticas públicas objectivas e direccionadas nesse sentido. Temos de sair das fronteiras do abastecimento público, mas olhar para a água como um todo e geri-la de forma integrada”, advoga Rui Marreiros.
Por tudo o que já falámos, depreende-se que a EMAS vai ser, no futuro, cada vez mais uma empresa com várias valências, que vão além da gestão, tratamento e distribuição de água?
Não tenho dúvidas que sim e, mais que isso, sentimos que essa questão vai acontecer naturalmente e com tranquilidade. Temos a noção clara da importância que a água tem em termos estratégicos e em termos da coesão territorial. Por isso, temos também uma sensibilidade relativamente à tal gestão global da água que é preciso fazer, aquilo que costumo chamar de gestão regional da água em sentido territorial e, depois, a gestão global, no sentido de gerir o recurso. Por exemplo, temos projetos em parceria com a EDIA e participamos num consórcio internacional precisamente para explorar a potencialidade da utilização das águas residuais para novas utilizações. E também temos uma relação muito forte com o CEBAL, numa ligação direta ao nível das parcerias. Tudo isto nos vai obrigando a sair da nossa “zona de conforto” e acrescentando novos desafios e valor a novas atividades, que depois se traduzem nestes projetos e em novas competências. É certo que somos uma empresa municipal e não esquecemos isso. Defendemos a água pública de forma absolutamente inequívoca, o que nos obriga a ter uma visão e uma responsabilidade diferente, não nos limitando só a fazer o que é essencial. É isso que nos leva a procurar novos desafios! Por isso temos também uma participação na Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA), cuja direcção também integro. A APDA é uma associação que junta as maiores entidades gestoras de água em termos nacionais e tem vários fatores positivos, um dos quais o conjunto de comissões técnicas que se dedicam a estudar e a criar propostas em diversas áreas. E o que fizemos foi levar os nossos quadros técnicos a colaborar com os quadros técnicos de entidades que são referência no sector, para tentarmos tirar daí conhecimento, ir aprendendo com eles e trazer para cá essas ideias.
Que futuro acha que está reservado ao sector? Sente que, com os desafios que estão no horizonte, o caminho passará pela agregação, ou seja, por juntar numa entidade a gestão das diversas redes de abastecimento da região, ao invés destas serem geridas por cada um dos respetivos municípios?
Acho que sim! Aliás, não tenho dúvidas rigorosamente nenhumas quanto a isso e até tivemos uma tentativa de que assim fosse… Na questão da água em baixa diria que isso vai acontecer inevitavelmente. A questão é apenas quando?
Tem resposta?
No Baixo Alentejo temos um conjunto de pequenas entidades, dos vários municípios, que gerem as suas pequenas redes e vão tendo cada vez mais dificuldade em dar resposta aos níveis de exigência que [o sector da] água hoje obriga em termos de qualidade ou de tempos de resposta. A gestão da água, atualmente, é altamente profissionalizada e se retirarmos essa competência dos municípios, mantendo-a na esfera municipal, mas com uma forma de gestão diferente, estamos a profissionalizar o sector, tal como aconteceu aqui na EMAS, dotando-nos de mais capacidade de intervenção. E depois temos ganhos em termos de economia de escala, tornando os serviços melhores e mais sustentáveis, preparando-os para a tal resposta que vamos ter de dar nos próximos anos. Esta é uma infraestrutura essencial, como são as telecomunicações ou a energia, que hoje já são geridas de uma forma não-municipal talvez, precisamente, por isso. Hoje o preço de kW em Lisboa é o mesmo que em Barrancos, sabendo que produzir e distribuir um kW em Lisboa é muito mais barato que em Barrancos. A tal empresa regional que se tentou tinha um efeito desta natureza.
Acha que a criação da Águas do Baixo Alentejo é um capítulo encerrado?
Como já disse, acho que isto é inevitável que aconteça. E o nosso objetivo era – já que tinha de acontecer – que acontecesse de forma controlada, numa altura em que havia subsídios para fazer os investimentos necessários. Acho que é muito mais vantajoso criar um processo destes de forma madura e controlada, do que, daqui a ‘x’ anos, estarmos perante problemas graves em determinadas entidades gestoras mais pequenas, que não conseguem dar resposta, e depois tem de haver uma solução quase de emergência e desenhada à pressa para resolver o problema. Portanto, diria que este é um processo longo, que irá fazer o seu caminho e que conseguiremos lá chegar um dia. O modelo pode ser variável, mas a gestão da água a este nível vai ter de acontecer. Mas há duas coisas que são importantes para ajudar a este processo.
Que são?
Uma delas é a “despolitização” da água. A água hoje, infelizmente, é muito politizada no mau sentido da expressão. Porque utilizar muitas vezes a água como instrumento de má política parece-me que não serve nem os políticos que o fazem. Também não serve todos nós do ponto de vista do interesse futuro que temos da preservação desse recurso. E não serve as populações que, muitas vezes, e ao contrário de serem esclarecidas, são desinformadas de forma errada relativamente a essas matérias. Já assistimos a isso e digo muitas vezes que os sindicatos usam estas questões com objetivos politiqueiros e contaminam o processo, quando tinham a obrigação de, por um lado, estar ao lado dos trabalhadores que defendem e criar condições para que estes tenham entidades gestoras maiores, com mais desafios profissionais, mais robustas, com uma maior perspetiva de aprendizagem e até de vencimentos. E, por outro lado, as estruturas sindicais também têm de estar ao lado das pessoas e das populações, portanto não podem sobrepor os seus interesses ou os interesses de alguns partidos políticos ao futuro das entidades gestoras ou da gestão da água. E depois há posições políticas dos vários partidos, que muitas vezes podem não ser as mais adequadas face aos interesses das populações e da necessidade de fazer a gestão da água desta forma. Ainda assim, diria que este é um processo tão natural que vai acabar por acontecer com mais ou menos sobressaltos. Pode levar o seu tempo, mas vai acabar por acontecer, é essa a minha convicção! No caso concreto da EMAS, eventualmente, somos os que na região menos precisamos desse processo, porque temos uma capacidade para resistir melhor aos vários problemas e vamos continuar a fazê-lo. Podem é contar sempre com a nossa ajuda e com a nossa experiência – e se necessário com a nossa liderança – para estarmos presentes nesse processo.
Também nesta, como em outras matérias, está em causa a nova centralidade para Beja, com destaque para o verdadeiro valor da cidade, do concelho e da região.
Se a criação dessa empresa for protelada no tempo, admite um cenário em que a EMAS assuma a gestão da água em mais um ou outro concelho além de Beja, mediante acordos com cada um dos respetivos municípios?
Diria que, de certa forma, isso já acontece, pois neste momento já prestamos muitos serviços aos outros municípios. Laboratorialmente fazíamo-lo, mas face aos constrangimentos financeiros do passado houve decisões relativamente radicais e uma delas foi suspender, provisoriamente, o controlo analítico de laboratório aos outros concelhos. Mas continuamos a fazer deteção de fugas em Barrancos, damos apoio a problemas em outros concelhos, somos muitas vezes chamados para a Mértola, Ourique, Serpa, Cuba ou Castro Verde… Não estamos é ainda completamente preparados para o poder fazer, mas fazemo-lo muitas vezes e orgulhosamente temos ajudado a resolver muitos problemas nos outros municípios.
Mas poderá isso ser alargado e chegar à própria gestão do sistema ou não?
Eu diria que isso traz-nos duas questões, uma em termos da sustentabilidade financeira e outra em termos do enquadramento legal. No modelo que foi desenhado para a Águas do Baixo Alentejo uma das premissas tinha que ver com o conjunto de população mínima que trouxesse sustentabilidade ao sistema. E, portanto, para o sistema ser sustentável deste ponto de vista, o que estava previsto era quase que criar um sistema de gestão intermunicipal, liderado eventualmente pela EMAS de Beja, mas formado por mais municípios. Há uma escala a partir da qual nós começamos a ter os tais ganhos. Sem essa escala, até podemos ter o efeito contrário… Quanto aos termos legais, isso é possível. Aliás, o que esteve sempre em cima da mesa era qual o modelo que queríamos. Podemos ter um modelo de gestão onde estão só os municípios, que é o modelo intermunicipal. E depois há os outros modelos, com privados ou através de concessões, que é uma coisa que para nós nunca esteve nem vai estar na agenda. Aliás, para isso não estamos disponíveis! Mas pode haver um sistema intermunicipal ou em parceria – como era o que estava desenhado – com a Águas de Portugal (AdP), que têm aqui a capacidade de trazer o investimento que é necessário.
Uma parceria público-público.
Exatamente! Grosso modo, estamos a falar de um plano de investimento de 80 milhões de euros, com 20 milhões para investir em Beja. E destes, cinco milhões seriam para investir nos primeiros cinco anos. E se não fosse a entrada do capital da AdP nesta parceria, este conjunto de municípios não tinha capacidade de aceder a estes 80 milhões. Portanto, é isto que temos de ponderar em termos futuros. Mas volto a dizer: isto vai acontecer de qualquer maneira e, aconteça o que acontecer no sector da água, a EMAS de Beja vai ter que lá estar.
Ainda em matéria de água, que visão tem faltado trazer para o sector?
Sem dúvida, uma questão que defendo desde há muito, um cluster da água que permita ter uma visão global, mas uma gestão regional com políticas públicas objetivas e direcionadas nesse sentido. Temos de sair das fronteiras do abastecimento público, mas olhar para a água como um todo e geri-la de forma integrada. Veja-se, por exemplo a complexidade do lado dos utilizadores, estamos nós e os nossos clientes, naturalmente, mas também a EDIA, as Associações de Regantes e os agricultores individualmente como grandes utilizadores do recurso água, mas temos também as entidades gestoras “em alta” que muitas vezes não se articulam e concorrem para a captação do mesmo recurso, novamente a água. Mas também temos como cliente final do recurso água a indústria e o turismo que de forma direta ou indireta consomem ou usam a água. Não esquecer também que a biodiversidade e o equilíbrio em natureza dependem diretamente também da disponibilidade do mesmo recurso. Mas depois temos do outro lado os “gestores da água” que vão desde as Câmaras Municipais, a grandes entidades gestoras, passando por empresas municipais e serviços municipalizados, concessões, entre outras, do Ministério da Agricultura ao Ministério do Ambiente e da Ação Climática, da Comissão Coordenação e Desenvolvimento Regional à Agência Portuguesa do Ambiente, passando pela Administração de Região Hidrográfica, pela Direção Regional de Agricultura e Pescas ou Instituto de Conservação da Natureza, da Entidade Reguladora de Serviços de Águas e Resíduos à Inspeção Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, enfim, uma imensidão de visões, missões e ações de difícil coordenação e articulação.Se pensarmos que a água para além da sua dimensão associada à manutenção da vida humana é um motor de desenvolvimento, um fator de criação de emprego e de riqueza, e um fator de competitividade decisivo, chegamos facilmente à conclusão que necessitamos de que todos os “gestores da água” se articulem entre si, que haja uma verdadeira política de gestão que proteja a natureza, preserve o recurso, disponibilizando-o de forma adequada às diferentes necessidade e utilizações e que isso deve ser feito com planeamento, fiscalização e monitorização. Para o conseguir é fundamental a criação de um cluster da água que tenha uma visão global e uma gestão regional integrada do recurso.
Segunda parte da entrevista publicada a 12 de Junho, no suplemento “EMAS de Beja: Uma empresa municipal, 100 anos de história”, distribuído com o “CA”