Há 50 anos, a censura tinha a última palavra sobre tudo aquilo que era impresso nos jornais em Portugal, onde muitas vezes o “lápis azul” obrigava a cortes e recortes. Nessa altura, ainda adolescente, já José Francisco Colaço Guerreiro, de Castro Verde, enviava crónicas para o “Diário do Alentejo”, escritas com todo o cuidado para escapar ao crivo dos censores.
“Este exercício de tentar escrever direito por linhas sinuosas imprimia-nos uma certa maleabilidade na expressão, permitindo-nos colocar no papel, em simultâneo, uma narrativa legível e outra distorcida e dissimulada, que era, afinal, o reflexo real do nosso pensamento”, lembra ao “CA” o antigo advogado e dinamizador do programa “Património”, da Rádio Castrense.
São meia centena destas crónicas editadas antes da Revolução dos Cravos que Colaço Guerreiro recupera em livro. Manifesto de Sonho e Tristeza é uma edição da Narrativa e será apresentado publicamente neste domingo, 21, na Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca, em Castro Verde.
Segundo o autor, “a feitura deste trabalho consistiu na compilação de 50 crónicas que escrevi antes do 25 de Abril de 1974 e que já tendo sido à data publicadas no ‘Diário do Alentejo’, foram agora republicadas em livro – sem receio da censura política – para assinalar os 50 anos de vida em democracia que vamos completar”, conta.
Colaço Guerreiro reconhece que, ao revisitar estes textos, recorda “os cuidados que com cada um deles tive ao escrevê-los, para ‘adocicar’ ao máximo os termos usados e selecionar as palavras aplicadas, recorrendo frequentemente a segundos sentidos ou trocadilhos linguísticos, de forma a que as mensagens contidas passassem impunes ao ‘lápis azul’”.
“Agora que revisitamos estes textos, avivamos os pensamentos e reflexões da adolescência, acordando memórias adormecidas de episódios, histórias e emoções datadas, entretanto já esbatidas pela sobreposição de meio século de outras realidades”, reforça.
“A feitura deste trabalho consistiu na compilação de 50 crónicas que escrevi antes do 25 de Abril de 1974 e que já tendo sido à data publicadas no ‘Diário do Alentejo’, foram agora republicadas em livro – sem receio da censura política – para assinalar os 50 anos de vida em democracia que vamos completar”, conta José Francisco Colaço Guerreiro
Em Manifesto de Sonho e Tristeza, as crónicas foram “arrumadas” segundo um critério “misto”, entre a data de publicação e as temáticas abordadas, que tinham, que ver com as realidades que mais tocavam então o autor.
“Dada a ausência de liberdade de expressão em que vivíamos, todos os assuntos mais apetecíveis eram precisamente aqueles sobre os quais a censura fazia recair mais a sua atenção e não tolerava quaisquer opiniões que melindrassem a política oficial do regime”, nota José Francisco Colaço Guerreiro.
Por isso, adianta, temas como “a vida das gentes pobres, os trabalhos no campo, a necessidade de procurar outras paragens em busca do pão, o drama da emigração ou a guerra colonial” surgem entre as 50 crónicas agora (re)publicadas.
A estas temáticas juntam-se escritos sobre “algumas figuras da terra, a paixão pelo Alentejo, a Feira de Castro, as tradições como as matanças, o canto das Janeiras ou os jogos como o pião, tendo sempre presente o contexto social e económico da época de grande negritude”, conclui.
José Francisco Colaço Guerreiro revela ao “CA” que Manifesto de Sonho e Tristeza vai estar disponível em diversas livrarias nacionais, assim como através da loja online da editora Narrativa, e terá um “sucessor”, dentro um ano, intitulado Escritos de Sonho e Esperança, com algumas das suas crónicas editadas após o 25 de Abril.
A par desta obra, o autor está a trabalhar no livro No princípio era a poesia (Contributo para a salvaguarda do cante), a editar em novembro deste ano, por ocasião das comemorações do 10º aniversário da classificação do cante alentejano como património imaterial da Humanidade da UNESCO.
Colaço Guerreiro está igualmente a “compilar apontamentos e a ordenar rascunhos” para, futuramente, poder editar a obras Feira de Crasto, Monumentos Castrenses, Contributo para a História da Viola Campaniça, do Despique e do Baldão, e Castro Antigo – As ruas e os moradores.