“Viver todos os dias cansa”*

Ana Ademar

actriz

Diz-se que aprendemos com a idade. E ainda bem. Alguma coisa de positivo havia de vir com a perda de elasticidade da pele, os pêlos em sítios inestéticos, borbulhas e outras erupções cutâneas, orelhas e narizes enormes (li algures que são as únicas partes do corpo que nunca param de crescer – se isto não é assustador, não sei o que será).
Há coisas que só se aprendem à força: precisei de algumas noites sem dormir para perceber que, aos trinta, o café me começou a afectar e que a única solução é enganar-me todas as noites com descafeinado.
Neste preciso momento estou em frente ao computador, sentada numa cadeira desconfortável, com o gato (que perde quantidades incríveis de pêlo) a morder-me os calcanhares (literalmente) e tenho à minha frente uma belíssima caneca de café. Descafeinado. Não posso pensar muito nisso, porque embora racionalmente perceba que o sabor é o mesmo, há qualquer coisa em mim que me faz resistir à embalagem azul. Cá dentro, sinto que descafeinado é coisa de mariquinhas… Porque, apesar de toda a sabedoria já adquirida ao longo das minhas três décadas (ai!), ainda me deparo com algumas infantilidades: coloco sempre quatro ou cinco colheres do maldito pó, em vez das três que chegariam perfeitamente, convencida de que, talvez assim, a mistela seja mais próxima do verdadeiro café!
Há dias em que me sinto mais crescida – quando bebo descafeinado – outros em que só me sinto velha: quando olho para o espelho, depois de uma noite mais longa, e vejo os dois copos de vinho ingeridos estampados em forma de papo debaixo dos olhos.
Mas nos dias em que me sinto mais conhecedora da arte que é andar por este mundo sem levar mais que a porrada necessária/inevitável (riscar o que não interessa), fico tão contente com a infinita sapiência acumulada, que, se não fosse a ciática, dava pulos de alegria. Aprendi que um frasco de pickles lavado não serve para guardar açúcar, porque o cheiro não desaparece. Aprendi que é mais fácil usar a loiça do escorredor do que tirar mais do armário, porque, invariavelmente, quando empilhar a segunda dose de loiça lavada, vou partir qualquer coisa. Aprendi que nunca tenho dias livres por altura da Feira do Livro e não vale a pena chorar por isso (ou vale, mas os papos debaixo dos olhos no dia seguinte impedem a cascata lacrimal). Aprendi que podia ter escolhido uma vida mais fácil, mas não tê-lo feito faz-me mais feliz (ou deu-me danos cerebrais irreparáveis, ainda não sei). Aprendi que às vezes um adeus é a melhor coisa do mundo, mas que é muito difícil ficar a ver as costas de alguém a desaparecerem. Aprendi que temos mesmo de mudar e deixar mudar. Aprendi que há pessoas que querem ser minhas amigas, ainda que eu seja o tipo de pessoa que não gosta de admitir publicamente que, à noite, tem de beber descafeinado. Aprendi que, às vezes, é urgente fugir do mundo e ficar só com o meu gato, os meus calcanhares arranhados e mordidos, a minha cadeira desconfortável e as minhas incontáveis canecas de café. Ou de descafeinado. Porque às vezes o mundo cansa, e é preciso tirar umas férias, nem que sejam em part-time.

*É o título, brilhante, de um livro (que não li)
de Pedro Paixão que se inspirou no, também brilhante,
poema de José Gomes Ferreira “Viver sempre também cansa”

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