Um Salazar Não Chega

Napoleão Mira

Escritor

Nas celebrações dos 50 anos de Abril e, num exercício de recuperação de memória que tenho vindo aqui a fazer, regressemos pois a janeiro de 1974.
Não nos esqueçamos que, para além da existência da entretanto renomeada DGS, da total falta de liberdade, da censura, da ausência de futuro para os mais desfavorecidos, do fado da desgraçadinha, do cinzentismo de um país triste, os jovens da minha safra têm pela frente uma guerra que já dura há 13 anos.
A malta desta idade já não pensa no que que fazer quando voltar (se voltar!) dela. Só pensa em como lhe escapar. Por isso, ao longo da duração do conflito, especialmente nos últimos anos, só para França fugiram cerca de 60.000 jovens, recusando uma guerra que nada lhes diz ou que estão notoriamente contra.
Estamos a cerca de três meses do dia mais marcante das nossas vidas. Quando ele ocorrer, os portugueses irão experimentar o perfume inebriante da Liberdade.
E de entre todos os que a experienciariam, as mulheres portuguesas seriam as mais beneficiadas, já que até aí estavam amarradas a grilhetas familiares e de género que as sufocavam. Que as não deixavam respirar. Que lhes não permitiam de ser donas da sua individualidade. Relembro aqui três exemplos dessa obscenidade. Enfermeiras, professoras ou hospedeiras de bordo estavam impedidas de exercer a sua profissão caso se decidissem pelo casamento. No caso das professoras, o Estado deveria aprovar o marido, tendo este de fazer prova da sua integridade (leia-se, fidelidade política!) e da sua capacidade económica para sustentar a futura família.
Até 1974, a carreira política estava-lhes vedada e viajarem sozinhas sem a autorização dos pais ou do marido nem pensar! Assim como abrir conta num banco, fazer uma sociedade comercial e tantas outras formas de submissão que têm vindo a ser ultrapassadas ao longo dos 50 anos do período democrático.
Quando ouço muitos saudosistas dizerem que um Salazar não chega para recolocar este país nos eixos, dou comigo a pensar o quanto regredimos ultimamente em termos de memória histórica.
Com todos os erros, sucessos e fracassos, temos feito o nosso caminho.
Se podia ter sido melhor? Claro que podia!
Mas quando olhamos pelo retrovisor da história e sumarizamos este percurso de cinco décadas, concluo que deixámos para trás um país quase medieval nesse janeiro de 74. Um país isolado politicamente e “orgulhosamente só”, como aludia amiúde o inquilino do Palácio de São Bento.
Entretanto, nos meses e anos anteriores, a Ação Revolucionária Armada (ARA), as Brigadas Revolucionárias (BR) e a LUAR levavam a cabo ações de envergadura para destabilizar o Governo e, quem sabe, até o derrubar através da luta armada.
Ao mesmo tempo e, debaixo dos narizes do apodrecido sistema, o Movimento dos Capitães reunia-se quase publicamente em diversos locais, sempre com algum aparato, mas sem se notar qualquer intervenção, quer da sua cúpula, quer mesmo da polícia política.
Mas neste “Jardim da Europa” de brandos costumes, onde o cultivo da paz podre parecia prevalecer sobre todos os cenários, desenhava-se nas barbas de um regime abolorecido, sustentado numa política a tresandar a naftalina, o tal dia da libertação.
Afinal, faltavam pouco mais de 100 dias para usufruirmos desse “dia inicial inteiro e limpo. Onde emergiríamos da noite e do silêncio. E livres habitaríamos a substância do tempo” (Sophia de Mello Breyner).

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