Três poemas

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Vítor Encarnação

<b>SORRISOS</b>
Quando entramos em casa esvaziamos os rostos
tal como eu esvazio os bolsos e tu a tua mala de mão.
Colocamos os nossos sorrisos em cima da mesinha de entrada
junto da chave de casa e dos trocos.
Não precisamos de nenhum deles
porque já nunca jantamos fora
e os pijamas não têm algibeiras
que aguentem tanto peso.
De manhã eu mudo de calças e tu de mala,
saímos para o trabalho
e lembramo-nos de levar a chave de casa e os trocos,
mas os rostos ainda não deram por falta de nada.

<b>BOA NOITE</b>
Houve uma noite em que virámos costas
porque, supostamente, tu deitada sobre o teu braço esquerdo
e eu sobre o meu braço direito, dormíamos melhor,
porque o colchão fazia uma cova,
porque a cama rangia se nos tocássemos,
e eu puxava as mantas todas
e tu enrolavas os lençóis que a minha mãe me tinha dado
e tu querias ler três capítulos do livro, não bastava um,
porque a luz me incomodava e tínhamos de nos levantar cedo
e eu ainda tinha de fazer a barba e tu o café,
porque eu tinha de ir aos correios e às finanças
e tu é que fazias sempre as compras e o jantar
e eu tinha de pagar o seguro do carro e despejar o lixo
e tu tinhas de engomar camisas
e já não havia guardanapos nem lâmpada no candeeiro da sala
e eu tinha deixado os sapatos na cozinha
e tu precisavas de afecto e eu de outra cerveja
e eu esqueci-me do aniversário do nosso casamento
e tu esqueceste-te de comprar fiambre
e eu deixei de trazer flores
e tu tinhas uma jarra vazia à espera de mim
e eu enterrei os poemas todos
e tu ficaste à espera que eles renascessem
e estávamos cansados dos pijamas e de nós
e nem nos virámos para dizer boa noite
aliás, nem dissemos boa noite.
Entretanto adormecemos e não sonhámos com nada.

<b>NÃO OMITAS NADA</b>
Deita as tuas rugas aqui ao lado das minhas, meu amor,
e diz-me que palavras perdemos pelo caminho.
Diz-me todas, repete-as uma a uma.
Tu que sempre tiveste uma boa memória de nós,
sussurra-as ao meu ouvido para eu me lembrar do que fomos.
Temos a noite toda e se esta noite não chegar,
ficaremos aqui deitados no escuro dobrando sóis e luas,
preenchendo o silêncio que trazemos nas nossas bocas
até alcançarmos o último verbo, até chegarmos ao último adjectivo.
E quando te calares, por favor chama pelo meu nome
para eu não adormecer, não vá eu esquecer-me de tudo outra vez.
Aproveita o meu cansaço.
Não omitas nada.

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