Tradições do poder

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Miguel Rego

arqueólogo

“O país está exausto. Os moldes duma normal vida económica quebraram-se; uma crise de moeda remediada por artifícios de tesouraria, uma crise de câmbio em que ao preço das cotações oficiais é impossível obter moeda estrangeira; uma crise de produção, destrutiva por excelência de tanta riqueza e dolorosa pelo desemprego que cria – cerca de 100.000 pessoas sem trabalho; crise comercial causada pela escassez de numerário, por proibitivas taxas de importação, pelo retraimento do consumidor receoso pelo dia de amanhã, milhares de empresas falidas, dissolvidas, milhares de concordatas, milhares e milhares de letras protestadas, a desconfiança com os seus altos juros, prejuízos incalculáveis, a estagnação em certas zonas da vida comercial eis o quadro desolador em que desgraçadamente nem é necessário forçar tintas para o tornar mais impressionante”.
Descanse o leitor que este texto não é meu. Mas reflecte o nosso país de há 83 anos. No entanto, neste texto da União de Interesses Económicos (UIE), a realidade não difere muito da actual. Contudo, passaram por cima deste jardim à beira mar plantado 48 anos de ditadura, um ano e meio de PREC e mais 34 anos e meio de democracia de Bloco Central ou para-central. E o que temos? A mesma realidade viajada no tempo até ao ano de 2010. Mas entenda-se que a UIE não é nenhum partido de esquerda. Não senhora. Corria o ano de 1924 quando é fundada em Lisboa e reúne as principais associações empresariais portuguesas. Organização de natureza político-económica, criada com o objectivo de coordenar a intervenção do patronato português no plano político-institucional, a UIE chegou mesmo a concorrer às eleições legislativas de 1925, obtendo 3,7% dos votos. De cariz autoritário, defendia a constituição de “governos fortes, essencialmente constituído por técnicos”, bem como o fim “da desordem e da partidocracia”. Isto é, dava-lhe jeito a instauração da ditadura, como viria a acontecer em 1926. Acima de tudo, pretendia zelar pelo interesse dos empresários, especialmente os do sector do tabaco, que o Estado naquela década de Vinte pretendia nacionalizar. Do documento que analisámos, e de onde retirámos este excerto, seguramente que não estamos de acordo com alguns dos princípios enunciados. Nem com o pano de fundo que está projectado por este grupo. Mas serve a reflexão e a comparação com os tempos de hoje. A ausência de líderes capazes provoca, naturalmente, o governar com as decisões mais fáceis… Historicamente tem sido assim. Pelos que se vê nos dias de hoje continuaremos assim. E o que vem a seguir não será diferente.

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