Tenho pessoas com quem falar mas não é a mesma coisa

António Lúcio

director da Rádio Pax

O que eu gostava que me compreendesses, falasses comigo, sentisses o meu amor, sorrisses para mim. Não compreendo o teu afastamento. Não abandono porque me vens visitar de dois em dois meses ou todos os meses, não sei bem. A minha cabeça já não é o que era e nestes últimos tempos, ou anos, não sei bem, tem andado muito baralhada. A minha mãe vem ver-me todos os dias, almoça comigo, janta comigo, fala comigo, diz-me coisas bonitas, palavras que me fazem sentir bem e tu só vens cá de dois em dois meses, ou todos os meses, não sei bem. Palavra de honra que tenho saudades quando tu pequena.
– Mãe!
E eu:
– Diz, minha princesa
E tu:
– Achas que sou bonita?
E eu:
– És linda, filha.
E tu olhavas-te mais uma vez ao espelho e sorrias e rodavas a saia e roías a unha do polegar direito (ainda hoje róis a unha do polegar direito) e afastavas a franja dos olhos e eu voltava a ajeitar-te o laço do cabelo.
– És linda, filha.
Vivo diariamente em guerra com a vida. Venci todas as batalhas mas já estou cansada, não tenho forças para mais, sinto que vou perder a próxima batalha e com ela a guerra. Dói-me a cabeça: não, não é bem uma dor é mais uma aflição que não sei explicar: nem é uma aflição, é mais uma coisa que dói e me faz chorar sem lágrimas. É como se chorasse para dentro mas ninguém chora para dentro, devo estar doente, estou muito doente e ninguém me ajuda, quero perder a guerra mas não tenho família, as pessoas enganam-me, querem fazer-me mal
– És linda, princesa.
e tu não me ajudas, não me compreendes, não falas comigo, não sentes o meu amor, não sorris para mim. Enganas-me. Todos tentam enganar-me mas eu não deixo, sou muito esperta, sou muito nova, tenho trinta e cinco ou quarenta anos,
– O que é que vocês pensam?
não, tenho trinta e cinco, sei bem que faço trinta e seis em Março ou Novembro. Estas que estão aqui, à minha volta, são falsas e velhas e putas e cheiram mal e mijam pelas pernas abaixo.
– Putas, são todas umas putas!
Eu não cheiro mal e não mijo pelas pernas abaixo porque sou nova, faço vinte e cinco em Junho e sou esperta. De quando em quando vem visitar-me uma desconhecida que diz que é minha filha, como se eu não conhecesse bem a minha filha.
– Você não é a minha filha!
A minha princesa tem seis anos e esta mulher desconhecida é velha.
– Enganam-me porquê?
Essas mulheres cínicas e velhas são más para mim, obrigam-me a comer sopa quente e a vestir fraldas, eu não quero fraldas, mãe, diga-lhes que eu não gosto de sopa quente, mãe, leve-me para casa, abrace-me, elas querem separa-la de mim, nunca põem um prato para si à mesa, dizem que você não está, que já morreu, mas você está aqui, mãe, junto a mim e abraça-me e fala comigo e beija-me e afaga-me o cabelo até eu adormecer. Porque desaparece, esfuma-se lentamente e depois volta a aparecer, mãe? Porque é que os braços não me obedecem, mãe? Estas pessoas desconhecidas fazem-me doer quando me dão banho, eu sei lavar-me sozinha, sou nova, faço cinquenta em Janeiro mas as minhas pernas não obedecem e tenho frio. Tenho muito frio.
– E tu, o que estás aqui a fazer?
Eu não conheço esta pessoa que está a falar comigo.
– Eu não te conheço!
Diz que é minha filha, como se eu não conhecesse bem a minha filha.
– Você não é a minha filha!
A que está aqui na fotografia é que é a minha filha,
– Veja, é linda não é?
a minha princesa, a minha vida. Hoje é uma mulher com a vida muito ocupada: emprego, marido, filho, sai de manhã e chega de noite a casa, não tem tempo para mim e eu compreendo, eu compreendo. Não te quero atrapalhar mas, o que eu gostava que estivesses mais tempo aqui.
– Estás muito bonita, filha!
Sinto-me sozinha. Não consigo acostumar-me a esta casa, a esta gente, é verdade que tenho pessoas com quem falar mas não é a mesma coisa. A Alzira disse-me que estiveste aqui de manhã, palavra de honra que não me lembro.
– Não tem importância, mãe!
Sabes, a minha cabeça tem andado muito baralhada, estou surda, vejo mal, as minhas pernas não obedecem, os braços também não obedecem, estou um farrapinho.
– A idade não perdoa não é, filha?
São os setenta e nove que faço no dia três do mês que vem, nesse dia não te esqueças de trazer o Álvaro, tenho saudades do meu neto, sei que ele não gosta de me visitar, aqui só há gente velha, mas, diz-lhe que eu gosto muito dele; diz-lhe que ainda me lembro do peso com que ele nasceu e a idade que tinha quando do primeiro dente; diz-lhe que lhe mudei as fraldas muitas vezes e fui a todas as festas da escola. Diz-lhe que o amo tanto como te amo a ti.
Não te afastes, filha, sei que a próxima batalha está a chegar.

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