O pai andava a trabalhar lá para o Algarve nas fábricas de conservas de Olhão e só vinha a casa de dois em dois meses. A viagem de camioneta era uma curva pegada ali pela Serra do Caldeirão, o caminho longo e a carteira curta. A mãe, moça com ancas e peitos cor de terra e dois sóis nos olhos, foi feita mulher numa cavalariça no Rosário, ao lado do relinchar de outro cavalo, ainda o Baile da Pinha ia a meio e ainda o futuro pai e marido não buscava sustento para a família no meio das tripas das cavalas, sardinhas e carapaus.
Quando ele nasceu a sete de Janeiro de mil novecentos e quarenta e cinco, a mãe ficou agarrada à cama e à fortuna tal tinha sido a perda de sangue e a inabilidade da parteira. O pai, no momento em que o filho levava a primeira palmada no rabo, comemorando a vinda ao mundo, estaria bebendo vinho ou folgando com alguma espanhola. Nessa altura as notícias corriam ao ritmo dos passos, quanto muito à velocidade das rodas da camioneta da carreira, e essa só o traria dali a um mês e meio.
Outro mês e meio esteve ele sem nome, à espera que o pai o trouxesse dentro da trouxa.
Faltando na segunda-feira ao trabalho, o pai, com goma nas golas da camisa e graxa nos sapatos herdados de um tio, dirigiu-se ao registo civil para dar nome ao recém-nascido que nesse dia vinte e dois de Fevereiro já sorria para os parentes, bebia três garrafadas de leite de vaca e mamava desalmadamente na chucha untada com água-mel e açúcar amarelo. Iria chamar-se Manuel José Guerreiro Xavier. Como o avô do lado do pai. Homem com pontaria na voz e no cajado.
Para não pagar multa disse à senhora do registo que o moço tinha nascido durante o fim-de-semana. E assim fugiu o pai à taxa e o miúdo ganhou seis semanas de vida logo ali em cima do balcão.
Manuel Xavier, a exemplo de muitos outros, por causa de fainas e de multas, tornou-se dono de um tempo esquecido. Um tempo que o bilhete de identidade não contempla e não reconhece. Nasceu portanto duas vezes: a primeira vez, da barriga da mãe, nove meses depois do baile do Rosário; a segunda vez, da boca do pai e da ingenuidade da funcionária do registo civil, dez meses e meio depois da dança na cavalariça.
Essas seis semanas são uma repetição na sua vida. Tudo acontece duas vezes. Uma primeira, medida a partir da hora em que rasgou o ventre da sua morena mãe. Uma outra, medida a partir da data a azul, escrita com caneta de tinta permanente na Cédula Pessoal. Entre os dois nascimentos há como que um espaço escondido da ditadura do tempo, uma caixa de bombons esquecida, um refúgio forrado de rebuçados de mentol, um tecto falso a servir de esconderijo, uma porta para lá do mundo, uma gaveta onde os relógios morrem de repente. Manuel Xavier é a explicação do <i>déjà vu</i>, a ciência do eco.
O patrão dá-lhe subsídio de férias e de natal, o tempo dá-lhe um subsídio de quarenta e cinco dias. A descontar na morte.
Ninguém sabe desse tempo que está pendurado numa corda da roupa no quintal onde os pássaros primeiro voam e depois, sem penas, é que regressam ao ninho.
Eu próprio nasci um mês depois de mim.
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