Solidão

Vitor Encarnação

Escritor

Quando o telefone tocou não estava mais inquieta do que o costume. Desde que o médico lhe reduziu a medicação para dormir, tem mais dificuldade em adormecer. A almofada é onde o sono devia estar, mas não está. O sono não passa de um vagabundo que a toda a hora entra e sai da cama e se vai instalar num ponto fixo do teto ou no cortinado ou no relógio ou na fotografia do casamento ou numa gaveta da cómoda.
Na outra almofada também ninguém dorme, pois o dono dela ainda não se encontra no quarto. Vem sempre tarde e adormece logo.
O marido não está a trabalhar, se estivesse ela não estaria triste. Estaria sim inventando insónias no corpo à espera que o corpo dele chegasse.
Ela sabe que ele anda com outras. Já antes de casarem ela o sabia. O pai bem que a tinha avisado que ele era má rês. Bebida e casas de alterne. Com quem eu vou casar a minha filha. Mas ela gostava dele, gostava daquele jeito gingão, do cabelo cortado à escovinha, da camisola de manga à cava, dos músculos dos braços, das mãos grandes. Fora ele o primeiro. Foi com ele que numa noite de baile se batizaram os dois do sangue dela. Mas ninguém sabe, ela não o diz, que na primeira vez ela não lhe viu nem os olhos, nem o rosto, nem a boca. Só lhe sentiu o hálito a cerveja e a tabaco no pescoço e nas costas. E não a beijou. Talvez fosse tímido, pensou ela.
Acreditava, como só as mulheres apaixonadas conseguem acreditar, que ele mudaria. Iria ensiná-lo a oferecer-lhe flores, a lavar a louça, a levantar a mesa, a fazer o jantar.
Meras ilusões. Ele quase nem se sentava à mesa, raramente almoçava ou jantava. Vivia com os amigos por entre petiscos, bares e mulheres da vida.
Fizeram a casa para ela morar.
Todos os dias as vizinhas lhe dizem que ele é um tunante, mas nem mesmo assim lhe contam tudo. Têm pena dela. Têm pena daqueles vinte e dois anos envelhecidos, dos peitos que o cérebro já não sabe enrijar, do ventre seco, do corpo mirrado. Há tanto tempo que não sorri.
O desejo morreu sufocado fechado à chave na gaveta das cuecas de renda.
E às vezes ele chega bovino e cheio. Cheira a perfume de mulheres e reservados. Puxa-a para si e serve-se. E ela é uma boneca de carne insuflável à espera de se ir lavar ao bidé. Quando volta já ele está de costas voltadas e ela tenta adormecer contando lágrimas. Não tem força para mais.
E as mãos dele são demasiado grandes e dolorosas.
Quando não consegue dormir levanta-se e vai à casa de banho. Penteia-se, pinta-se, põe creme no rosto, arranja as unhas, veste uma camisa de dormir transparente e vai sentar-se no sofá da sala. Não parece a mesma. Abre uma gaveta e tira lá de dentro três álbuns de fotografias. Pega num, o primeiro e folheia-o. Passa os dedos por cima de cada foto. Com o tato procura reaver o sorriso. Pede ao tempo que volte a ter páginas assim. Esta uma festa de anos. Aquela na praia. A outra um acampamento. A turma do décimo ano. Uma visita de estudo. Alguém que gostava dela e ela não quis. O casamento. Sempre, sempre a sorrir. Não há dúvidas, nas fotografias era feliz. Mesmo muito feliz.
O telefone tocou. A meio da noite, a más horas, o toque de um telefone é como uma navalha acordando o coração com o bico e rasgando a espinha com a lâmina. Fora de horas, não há som pior do que esse ecoando ao fundo do corredor, abaixo das escadas, na sala ao lado. É como um bicho pestilento e faminto que corre pelas paredes da casa toda e traz medo nas patas barulhentas.
Deu um salto na cama e ficou sentada, ofegante, na garganta um nó que a comoção já não sabe desfazer. A camisa de dormir tem a graça de uma bata de cozinha, o cabelo ouviu lobos nesta noite.
Não precisou de encontrar no escuro o interruptor do candeeiro, ela dorme sempre de luz acesa, tem medo que a noite a esmague ou a afogue na solidão que inunda o quarto. Aliás, o quarto é uma salina grande que ela limpa com um lenço antes de o marido chegar.
Não se mexe. A campainha petrifica-a, prende-lhe as mãos e os pés. Quatro horas da manhã e o telefone cala-se.
O silêncio de um telefone que se cala depois de ter tocado às quatro da manhã e ninguém o ter atendido é um pedaço de gelo a derreter-se nos ouvidos. Um minuto. Dois minutos. O silêncio sem saber o que fazer. Está a mulher ainda atada à angústia quando o telefone toca novamente.
Agora dá um salto, corre pelas escadas abaixo e levanta o auscultador. Sim sou eu, responde ela. Vai ouvindo o que lhe dizem. Do outro lado a voz é pausada. Quando a conversa acaba não se despede. Pousa o auscultador. Era do hospital. O marido morrera num acidente de carro.
Não grita nem chora. Não vale a pena. Não sabe se tem pena.
Volta ao quarto e apaga a luz. Em cima da almofada, ao lado dela, repousam três álbuns de fotografias com sorrisos e felicidade lá dentro.

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