Setembro

Vitor Encarnação

Escritor

Gosto de setembro porque em setembro começa o declínio da luz. E luz a mais apodrece a poesia. Come-lhe os ossos. Adormece-a. Enfraquece-lhe a alma pungente. Engana-a com tanta luminosidade. Quanto muito escrevem-se umas linhas sobre gaivotas rasgando o azul. Ou sobre um pôr-do-sol numa falésia. Ou sobre um corpo bronzeado de mulher a arder nos olhos de um homem. Pão com melão no Verão. E pouco mais. De Verão as palavras não se endireitam. São coisas moles. Preguiçosas. Dormentes. Sentadas em esplanadas. Assadas no carvão. Deitadas na praia. São sons que se arrastam com areia nos pés. Enfiadas em chinelos de praia, riem-se e pronto.
Não têm angústia, não têm nada.
Mas em setembro começo a ter esperança outra vez, pois o Sol é um balão cor de laranja que morre espetado nos picos dos figos da Índia. Em setembro já há mais noite e por isso começo a ver melhor o que está dentro do ocaso da vida.
Em setembro, depois de sair de um deserto de sol, apetece-me arrumar a vida. Apetece-me pensar outra vez, recomeçar a sentir a fragilidade da existência, regressar à dúvida, cimentar ilusões.
Em setembro já há um prenúncio de romãs doces na minha boca e por isso não me importo que a luz se desprenda das árvores e morra.
Em setembro a terra come o Sol mais cedo com os dentes dos restolhos. O azul do céu morre de fadiga e leva com ele o cantar dos grilos e as talhadas de melancia. O calor começa a cair no abismo do tempo e as mangas das camisas caem até aos punhos. As vinhas chamam pelos homens para que as provem, as arranquem e as esmaguem docemente e as paredes viradas ao sol arrefecem e matam o hábito cálido das osgas. Setembro é uma ponte para outros recomeços. Setembro é belo porque simultaneamente é um fim e um princípio. Congrega em si uma oposição. É ao mesmo tempo morte por exaustão do sol e dos frutos e também ventre da noite e das sementes. Ainda tempo de gaspachos, mas já de caldo verde. Ainda tempo de cerveja, mas já de vinho. Ainda tempo de sardinhas assadas, mas já de jantares de grão. Ainda tempo de calções, mas já de casacos de malha. Ainda tempo de gelados, mas já de torradas. Ainda tempo de verão, mas já de outono. E depois virá o dia em que se parte o espelho da claridade e as manhãs acordam com nuvens nos olhos e a luz entra cega pelas janelas e as primeiras águas caem dos olhos das manhãs como lágrimas de saudade das lareiras e do frio.
Setembro aí está. Mais noite menos dia.

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