E aqui estou, passados trinta e tal anos, nem sei precisar, muitos, aqui estou onde os meus avós viveram e eu passava uma semana das férias de Verão. Continuo sem entender a razão que me trouxe. Já não conheço as pessoas e as pessoas não me conhecem, sou um estrangeiro, um desconhecido, não só as pessoas, a aldeia não me conhece. Apetece-me sair do carro e perguntar ao senhor que está sentado no canto do muro do chafariz:
Lembra-se de mim?
Mas não, sou tímido demais para perguntar seja o que for, prefiro ficar dentro do carro à espera não sei de quê, a pensar em nada, vazio, nem sei quem me trouxe, eu não fui caso contrário saberia porque estou aqui. Talvez tenha deixado alguma coisa esquecida, mas o quê? Como vou descobrir seja o que for neste lugar que os anos tornaram desconhecido? Tudo mudou, as ruas estão vazias de pessoas, as pedras arrumadas da calçada são, agora, alcatrão. Reconheço algumas casas, uma ou outra árvore, poucas. Reconheço o chafariz no largo da aldeia onde os animais bebiam e as mulheres enchiam infusas. Já não vejo Jesuíno sentado no canto do muro do chafariz, no seu canto, pétreo, só ele se sentava ali, só ele. Ninguém se importava. As mulheres e os homens da aldeia afirmavam, baixinho, que nunca regulou bem da cabeça, que tem uma falha, que
– Nasceu com o diabo no corpo.
Nunca o ouvimos pronunciar uma palavra, apenas sons que, depois de várias tentativas, conseguia-mos interpretar. Em noites desencontradas, ainda com lua alta, levantava-se da cama e ia sentar-se no seu canto: os cotovelos assentes nas pernas e o queixo dormindo nas mãos. Vivia com a avó, os pais foram para a Alemanha à procura de vida melhor tinha o Jesuino três anos.
– Um dia, sem dares por isso, entram por aquela porta!
A Ti Joana tentava confortar os pensamentos do neto. O seu menino. O que lhe restava. Todos os dias lhe dizia
– Um dia, sem dares por isso, entram por aquela porta!
A Ti Joana sabia que o filho e a nora jamais regressariam. Desentenderam-se lá na Alemanha, separaram-se, cada um para o seu lado, conheceram outras pessoas, criaram outras famílias, nasceram filhos que não têm o diabo no corpo. A velha ficou a saber tudo numa tarde chuvosa de Inverno, véspera de Natal. O carteiro chegou escondido em plástico de trevas, como o dia, a chuva caía, pesada, junto ao beiral da porta, fez barulho de metralhadora ao esbarrar no carteiro. Foi a segunda carta que a avó do Jesuíno recebera em toda a sua vida. A primeira foi para dar a notícia da morte do filho mais velho: morreu em combate no ultramar, na Guiné.
– Foram os pretos.
Dizia ela num tom resignado.
Pela segunda vez, em toda a sua vida, pediu à merceeira, à Menina Esperança, para lhe ler a carta. De rosto carregado, ouviu o que aquele papel lhe veio dizer. O som das letras desvanecendo, olhar embaciado, chuva, cheiros de mercearia, ao longe o coaxar das rãs que habitam o chafariz do largo da aldeia. Deixou de ouvir. O tempo devagar e o coração a esse ritmo. A guerra na Guiné, o filho mais velho, o neto, o filho, a nora, o marido no caixão, o cheiro da morte, o neto, o filho mais velho, a dor, a dor.
– Está a ouvir, Ti Joana? Quer que leia a carta outra vez?
O silêncio. Saiu muda. Rosto carregado seco de lágrimas, passos lentos, guarda-chuva fechado na esperança que a água do céu lhe apagasse as lembranças. Lembranças que doem. Enfiou a chave grande, preta, na fechadura. A porta, cor de madeira envelhecida, marcada pelas dentadas profundas do tempo. O Jesuíno, ainda pequeno, sentado no mocho, à roda do lume: os cotovelos assentes nas pernas e o queixo descansando nas mãos.
– Um dia, sem dares por isso, entram por aquela porta!
Nunca contou ao neto.
Porque me vem à memória tudo isto? Continuo dentro do carro à espera não sei de quê e, agora, reparo: lá fora o dia acaba vagarosamente. A noite assoma, quente, sem ter horas nem compromissos. Estou a reconhecer este final de dia ou de tarde ou início de noite: nunca sei o que é mais correcto dizer. As sombras crescem nas paredes enrugadas das casas de cal. Ouvem-se os pardais, longe, numa luta desgovernada para conseguir o melhor lugar nos cedros que amuralham o cemitério. O cemitério está lá, no mesmo lugar, misterioso. Com um pouco de sorte ainda vejo, ali, ao fundo da rua, aparecer o Ti João montado na carroça barulhenta, a regressar do campo, da labuta. A mula desgastada dos dias iguais, da idade; as ferraduras comidas pelo chão quente resvalarem na calçada polida dos anos. Com um pouco de sorte ainda oiço a minha avó:
– Neto!
A minha avó nunca me tratou por António ou por Lúcio, foi sempre neto.
– São horas de levantar, neto!
Mas eu ficava, sempre, um pouco mais, aconchegado nos lençóis com cheiro a sabão azul.
– Só mais cinco minutos, avó!
Há coisas que se colam à gente, que vivem em nós, não nos largam, permanecem ao longo dos anos, sem entendermos a razão: ainda hoje o cheiro do sabão azul.
– As fatias de ovo e o café estão a arrefecer.
Se não fosse tão tímido batia à porta daquela casa, entrava e, com um pouco de sorte, sentia o cheiro do café e das fatias de ovo que a minha avó me preparava. Se não fosse tão tímido, saia do carro e perguntava ao senhor que está sentado no canto do muro do chafariz:
– Como se chama, meu amigo?
Com um pouco de sorte ele levantava a cabeça, olhava-me nos olhos, sorria e com voz estranha:
– Jesuíno.

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