“Quando andava nas mãos dos ciganos”

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Sandra Serra

Quantas vezes o meu pai, a propósito de determinada situação que considera digna de registo e pensamento, nos relembra os dias “em que andava nas mãos dos ciganos” (a expressão é metafórica). São várias as histórias que conta – as memórias que reaviva – do tempo da sua infância. Cada uma vem a propósito de cada momento. Sem imposição de moralidade, assim as vejo, assim as escuto, mas sempre com o intuito de nos levar a pensar sobre determinado assunto. Como aquela em que caminhava todos os dias a pé, fazendo chuva ou sol, seis quilómetros até à escola, ainda noite cerrada e já tratados os animais, à ida, e mais seis, à vinda. Naqueles tempos, falamos na década de 30 do passado século, conta o meu pai, o professor tinha uma cana que chegava de uma ponta à outra da sala e não a usava como ponteiro. “9×8”?, perguntava. Se a resposta não fosse 72, setenta e duas vezes levaria com o ponteiro detrás das orelhas o aluno que se atrevesse a errar a tabuada. Ainda hoje o meu pai conta a história agarrado à orelha direita como se sentisse as vergastadas da vara de loendro.
Ainda hoje o meu pai, quando dúvidas existem sobre a geografia de Portugal, que ele sabe na ponta da língua, tira da estante o velho alfarrábio só para nos confirmar. “Estás a ver, Arouca, distrito de Aveiro”.
Há uma história para cada situação. Como a do homem que resolveu fazer curral para os porcos na escola primária desactivada de S. Marcos. Chamada a intendência para pôr cobro à situação, garantiu-lhe o dono da vara: “Não se preocupe, senhor agente, eles ficam cá pouco tempo que já têm a quarta classe quase feita”.
As “histórias de quando andava nas mãos dos ciganos” alimentam a minha casa há gerações. Sei perfeitamente que quando o meu pai as conta não é porque pense que devíamos ter frequentado uma escola como a dele, porque assim é que era, que assim é que devia ser e que o que faz cá falta são três Salazares, mas para que saibamos dar valor ao sacrifício mais tarde compensatório e não encaremos a vida com uma postura de facilitismo.
Lembrei-me destas e de outras histórias a propósito do “concurso” de televisão “A Bela e o Mestre”, exibido pela TVI, ao domingo, em horário nobre e familiar. Tal como as histórias do “tempo em que andava nas mãos dos ciganos”, a minha lembrança não teve em si nenhum fundo de imposição de qualquer moralidade, mas fez-me pensar no assunto. Uma das conclusões que tirei? Veio-me com outra história do meu pai e que acaba assim: “a culpa não é deles”.
A culpa é nossa em primeira instância porque assistimos ao programa, dando-lhe audiência e fazendo com que seja este o programa familiar com que a TVI nos brinda ao domingo. A culpa é nossa porque continuamos a conviver bem com a divisão entre aqueles que são os inteligentes e feios e aqueles que são belos e burros. Geralmente, as mulheres correspondem à segunda categoria. É nossa porque nos rimos se alguém não sabe identificar fotograficamente o primeiro-ministro de Portugal e chama Mia Cotovelo ao Mia Couto. Depois, será culpa de muita mais gente. Mas, por este andar, talvez os porcos passem a ocupar as escolas desactivadas e os lugares das crianças que nem a oportunidade têm de fazer 12 quilómetros a pé para ir à escola. E talvez se continue a terminar a escolaridade obrigatória sem se saber a tabuada. E talvez continue a ser muito fácil adquirir o título de engenheiro. Ou talvez, com a onda de revivalismo e saudosismo que anda aí, seja melhor agarrarmo-nos às orelhas não volte o maior português de sempre do sepulcro para pôr fim a isto às vergastadas de vara de loendro.

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