Princípe Valente

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Napoleão Mira

empresário

<i>Deixa-me apartar-te essa marrafa como deve de ser </i>– dizia minha mãe algo furiosa antes de me puxar pelo braço e em passo apressado me arrastar pela mão em direcção ao caminho que iniciava o penoso percurso que deveríamos fazer a pé, até chegarmos à paragem do autocarro que nos haveria de levar até ao Bairro de Alvalade, mais propriamente à Avenida da Igreja, nº 25.
Acompanho a minha mãe neste dia de Verão, vou tirar fotografias para a escola à Foto Cabral, já que este ano (1966) entro no ensino secundário, na Escola Técnica Elementar Eugénio dos Santos, como era então chamada.
Chegados à Foto Cabral, o fotógrafo pede à minha mãe que me volte a pentear. Esta molha o pente na bacia preparada para o efeito e volta a refazer-me o risco ao lado, ficando eu com um aspecto assim a dar para o lambido.
O sr. Cabral manda-me sentar num banco e colocar a cabeça assim meio á banda meio a três quartos. E ordena-me que sorria, enquanto que este com a cabeça enfiada num pano preto que é uma extensão da sua máquina, me vai ordenando com a mão direita que me mova ligeiramente para um dos lados onde o enquadramento seja mais favorável.
– <i>Agora não te mexas. Olha para a máquina e sorri. Pronto já está!, </i>returque o sr. Cabral enquanto se liberta do túnel de pano preto em que estava mergulhado.
– <i>As fotos são normal ou urgente?, </i>pergunta o diligente retratista.
– <i>Quer meia dúzia ou uma dúzia. Se encomendar uma dúzia oferecemos-lhe uma foto 8×10 cm.</i>
Minha mãe decide-se pela dúzia e pelo modo normal que vai demorar 15 dias, sendo que na próxima semana devemos cá voltar para verificar as provas e escolher a pose do produto final.
O nosso último destino é um prédio na mesma correnteza desta avenida, uns quantos números mais abaixo.
Minha mãe vai trabalhar a casa de dona Teresa e, nestes dias de Agosto, a família da casa estará a banhos no litoral.
Subimos ao terceiro andar, onde minha tia Felícia (a criada interna) nos abre a porta, escancarando também o sorriso com que nos recebe.
Como os patrões não estão em casa, posso ir brincar para o sótão onde os meninos da casa possuem uma colecção de brinquedos, livros, jogos, lápis de cor e uma enorme pista automóvel para carrinhos eléctricos que é a minha perdição.
Minha mãe recomenda-me que não estrague nada sob pena de nunca mais aí voltar.
Estou no paraíso! Para um alentejanito com pouco tempo de Lisboa, cujos brinquedos consistiam num arco, pião e bilas, ter ali à minha mercê toda aquela parafernália de divertimentos, ainda por cima num sótão e só para mim, era assim como estar no céu.
Desde pequeno que gosto de ler, foi ali naquelas águas-furtadas que avidamente consumi toda a colecção do Tim Tim publicada até então, os livros do Príncipe Valente (de longe o meu herói favorito!), os Mundo de Aventuras e tantos outros.
Quando tínhamos de voltar no dia seguinte, levava-os à socapa para casa, para ler e reler até que o sono me vencesse. E logo que acordasse, neles voltar a mergulhar em fantasias de sonhar acordado.
Era assim a vida dum Príncipe Valente do subúrbio em que me transformei. Construi com as minhas mãos uma espada feita de madeira de cabo de vassoura, que embaínhava à cintura, cirandando pelo bairro à cata de cinderelas para resgatar, não sem nunca derrotar em mortíferos duelos os seus imaginários algozes.
E minha mãe, a cada manhã da minha vida, teimava em humilhar-me com aquela coisa de molhar o pente na água da bacia e apartar-me a marrafa.
– <i>Mãe…Mãe, não se aparta a marrafa a um guerreiro. O príncipe Valente não tem marrafa</i>, esbracejava eu durante os sonhos em que me transfigurava no meu personagem favorito.
Aquando do nosso regresso à Foto Cabral, para escolher as fotos, o ilustre retratista agarra uma delas e olhando para mim por cima dos óculos, diz:
–<i> Se fosse a ti escolhia esta, tens um não sei quê de cavaleiro andante.</i>
Ao mesmo tempo sorriu, piscou-me o olho e num carinhoso afago de cabelo… destruiu-me a marrafa !

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