Prender o fumo

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Vítor Encarnação

Cometi o meu primeiro crime de nicotina e alcatrão era eu adolescente, bichinho descobridor e curioso, essencialmente para saber o que os homens sentiam quando deitavam o fumo pelo nariz e faziam malabarismos de cinza. E depois também não tinha culpa que o meu avô fumasse e eu gostasse de o ver enrolar o tabaco e passar a língua pela mortalha e depois com os dedos, amarelos do fumo de uma vida inteira, pegar na tenaz, agarrar numa brasa latejante, acender o cigarro e fazer bolas de fumo dançante. Ou de lhe admirar o porte quando ele em dias de festa fumava Definitivos na quietude do sol posto. Não tinha culpa que o cheiro dos cigarros se agarrasse a mim como o aroma do café ou das fatias de ovo. Não tinha culpa que aquele ritual de tabaco fosse ternura. Desculpem, mas não havia ciência que me demonstrasse o contrário. Nem podia haver doença ou vício ao canto da boca do meu avô.
Tremeu-me a mão quando, pela primeira vez, puxei fogo ao tabaco e à ética com um isqueiro Cricket que me havia saído num furo. Para não ser apanhado com a boca no filtro devo ter andado para aí uns dois ou três quilómetros, distância que me pareceu suficiente para do casario não se conseguir ver o fumo do Mata-Ratos. Devo ter fumado uns dois de seguida. Por causa dos nervos e dos químicos fiquei com uma tontura tão grande a pontos de não saber para que lado ficava a vila.
Escondido o Kentucky numa cova, voltei mais algumas vezes para dar seguimento ao meu processo de afirmação. Mas aqueles sinais de fumo, não sei se por causa dos vómitos ou por ninguém ter testemunhado a façanha, não me deixaram memórias saborosas.
É talvez por isso que eu sou fumador acidental, desses lorpas que nunca compram um maço de cigarros e se aproveitam dos maços dos outros, assim já a meio do serão, quando fumar ou respirar o ar é praticamente a mesma coisa. O que é um facto, politicamente incorrecto por sinal, é que por vezes as conversas envoltas em fumo são as mais interessantes porque há filosofia e vivências bravas e poesia e criação e imaginação e coerência e humor e verticalidade e transcendência em algumas pessoas que fumam. Não me passaria pela cabeça pedir-lhes que não fumassem, seria o mesmo que lhes estar a pedir que se calassem ou não sonhassem ou não criassem. Mas estou com elas e com o fumo delas porque quero. Eis a diferença.
Paremos então por aqui. Todo este discorrer não é uma apologia ao tabaco. É sim uma apologia à democracia e às escolhas individuais. Eu até concordo com a lei – que absoluto paradoxo, dirão. Concordo com o direito que cada um tem, num espaço público, a usufruir de um café, de uma refeição, de uma conversa, da filosofia, da criação, sem que haja uma nuvem de fumo a denegrir a transparência do ar. Aceito que há egoísmo nos fumadores. Subscrevo o rol de malefícios atribuídos ao tabaco. Não discuto sequer o grave problema de saúde que representa.
Longe de mim a promoção do tabaco. Mas é preciso que a discussão da lei se mantenha clara e objectiva entre o que é o espaço público e o que é o espaço privado.
No primeiro, a lei tem toda a lógica, toda a pertinência, todo o meu apoio. No segundo, tenham paciência, mas eu lembro-me sempre do meu avô.

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