Portuguesices

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

António Revez

Há para aí uns dez milhões de portugas, mas na verdade talvez só existam uns dois ou três exemplares, e parecidos. Somos um povo muito homogéneo, muito embora subsistam profundas e gritantes desigualdades sociais e económicas que nos dividem, que nos fazem conflituar e guerrear. Mas aquela estrutura medular, a essência que forma a identidade, a portugalidade, e que alimenta o estereótipo com que nos reconhecem, torna-nos a todos gémeos siameses, ligados pelo umbigo para toda a vida a bordo desta barca do inferno chamada Portugal.
Olhamos para os outros e confundimo-nos com eles, e sentimo-nos mal, negamos, recusamos isso com as armas da ironia ou da descompostura, para nos demarcarmos. Até ao momento seguinte em que pensamos ou agimos exactamente da mesma maneira. Mas nunca admitimos. Porque é doloroso ou embaraçante. Porque isto do “ser português” faz-nos andar aos encontrões com muitas fraquezas, falsidades e máculas.
De entre o cardápio negro das idiossincrasias nacionais ganham evidência os seguintes petiscos:
O receio da mudança, da inovação, da ruptura, do corte. O portuga é um bicho conservador, só arrisca em desespero, só muda muito calculadamente e raramente o faz de forma drástica e radical.
A incapacidade de autocrítica encavalitada com a incapacidade de aceitar inteligentemente as críticas. O portuga muito dificilmente assume que errou ou que procedeu incorrectamente, mais dificilmente ainda pede perdão, e tem de descer Deus à terra para ouvi-lo a reconhecer a justeza e pertinência das críticas que lhe foram endereçadas. Prefere desculpar-se sempre com os outros e com o que os outros fizeram no passado, de que é exemplo o discurso político.
Em contrapartida o português típico é recordista mundial da incontinência crítica apática, isto é, dispara acto contínuo em todas as direcções contra tudo e contra todos, mas sem nunca fazer rigorosamente nada ou alterar no que quer que seja aquilo que suscita as suas críticas.
Deixar sempre tudo para a última da hora é uma espécie de orgasmo nacional, melhor dito, de orgasmos múltiplos nacionais, pois tudo é deixado para o último minuto. Mesmo que depois o carro ande sem seguro, se paguem coimas por entregas de impostos fora de prazo, se perca a casa com que sempre se sonhou, se volte para casa porque já não havia mesa no restaurante nem bilhetes para o cinema.
Outro ponto de honra inegociável para o portuga é chegar sempre atrasado a qualquer compromisso, ou então faltar aos mesmos, e olhar com desdém arrogante para quem é cumpridor como se este fosse o maior parvo do universo.
O portuga abomina com todas as forças tudo o que o avalie. Deseja a morte a quem faça controlo de execução da sua prestação, ou vigie, inspeccione ou audite do seu trabalho.
O português que se preze emociona-se com o seu patriotismo bacoco, e surge uma lágrima no canto do olho quando lê no desportivo que o Emídio Silva, jogador de futebol amador num clube de bairro de uma vila francesa, foi convocado para o último jogo.
Se há coisa que mobiliza o portuga é a obsessão justiceira. Por isso tem como lema a vingança, o ressentimento, os ajustes de contas, a justiça pelas próprias mãos. Despreza as leis e as instituições públicas. Explode de ódio às autoridades, sobretudo às autoridades policiais.
O portuga é um opinador nato, sabe comentar tudo, tem opinião sobre tudo, é analista, psicólogo e juiz implacável. Recebe instrução no jornalismo sensacionalista, que transforma a parcialidade tendenciosa e a superficialidade em conhecimentos autorizados e verdades indiscutíveis.
O português ama a fachada e o estatuto. É católico mas não praticante. É militante partidário mas não vai às reuniões e não participa nas actividades do partido. É sócio do sindicato mas nem a sede do mesmo conhece. É sócio do clube ou da associação mas não paga as quotas. Ganhou a guarda do filho mas esqueceu-se do mesmo no jardim, porque estava muito atrasado para ver o Benfica na televisão, e afinal acabou por ver a “Casa dos Segredos”. Nessa noite não bateu na amante.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Em Destaque

Últimas Notícias

Role para cima