Pensamentos de férias

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Carlos Monteverde

Sou um dos portugueses com o privilégio de poder ir de férias, quando sei que alguma da classe média, a maioria dos desempregados e aqueles que nada têm, não o podem fazer
De crise em crise, à espera de melhores dias que vão ser certamente precedidos de muitas mais crises, os portugueses da classe média para baixo estão, de facto, a viver pior. E se falo da classe média para baixo, é porque para cima não há crise, não falta o dinheiro e a corrupção, as negociatas com os amigos, a promoção dos “yesmans” e dos medíocres.
É demasiado repugnante sermos massacrados nas televisões com os berros sr. Valentim Loureiro à saída dos tribunais, insultando tudo e todos, incluindo os juízes que se calhar não o penalizaram tanto como deveria ter sido. A que propósito é que esta personagem ainda tem tempo de antena? Pelo seu trabalho de autarca sério e impoluto? Ou pela imagem de inexcedível seriedade que trouxe ao futebol português, como dirigente de um clube ou como presidente da Assembleia Geral da Liga?
Já aqui opinei sobre a medíocre imprensa desportiva, num país onde existem três jornais desportivos diários, que para sobreviverem, criam permanentemente intrigas e cenários irreais, que ajudam a estupidificar as franjas mais frágeis da nossa população.
Exemplo de Verão são as aquisições dos foras de série e prodígios pelos chamados “grandes”, sendo alguns recebidos como imperadores logo no aeroporto e arrastando milhares de adeptos ao primeiro treino. E todos eles mostram apontamentos fabulosos nos treinos da pré-época, que desaparecem nos primeiros jogos a sério, quando a apreciação dos jornalistas é substituída pela visão dos que pagam bilhete.
Os portugueses viram nos últimos dias chegar o fabuloso Aimar, que na Espanha foi co-responsável pela descida do Saragoça e em Portugal é a melhor e mais cara aquisição do Benfica.
Num país onde há cada vez mais casais jovens a devolver as suas casas à banca por incumprimento da prestação mensal, os chamados três grandes, que devem milhões, podem comprar e gastar à vontade mais milhões em novos jogadores, muitas vezes só para satisfazer os seus sócios, certamente participantes de outros protestos sociais, mas de olhos fechados e concordantes com as imoralidades dos seus “gloriosos”.
E devemos dizer que foi bonito ver o novo moralista do nosso futebol, o sr. Luís Filipe Vieira, com o seu verbo fácil e fluente, dizer no fim de tudo que mesmo que o FC Porto não fosse à Champions, por ele, o Benfica não iria no seu lugar. Bonito e comovedor. Penso até que o rapaz não o disse mais cedo, para aumentar o suspense. Mas a nação benfiquista tem até algum orgulho no “magnífico gestor”, que já é um dos 50 portugueses mais ricos. Eu gostava só de saber se também é um dos 50 maiores pagantes de impostos. Declarações de impostos que, aliás, os portugueses deviam conhecer de todos os principais dirigentes desportivos.
Também não vale a pena comentar, mas apenas sublinhar aquele senhor presidente, que ao ver que não tinha maioria, deu por encerrada a reunião do Conselho de Justiça, mostrando à sociedade o nível ético dos figurões do nosso futebol, que o sr. Madail tem apadrinhado e que mostram a razão de ser dos “apitos dourados” e de muitas outras cores. A única certeza com que ficámos é que das bandeirinhas e dos ordenados do sr. Scolari até à verdade desportiva o caminho vai ser ainda longo.
E porque ao ir de férias também faz falta levar alguma coisa boa, deixem-me também lembrar os 90 anos do sr. Mandela. Li o livro bibliográfico de Nelson Mandela há alguns anos, ainda ele era presidente, e mais que os seus quase 50 anos de prisão, de onde saiu com uma mensagem de amor e liberdade, o que eu penso que deve ser realçado é o seu desapego ao poder, que abandonou voluntariamente, num exemplo raramente repetido. Não fez fortuna, eliminou o <i>apartheid </i>sem o substituir por outro e mostrou ao mundo que é pela seriedade e pela ética, que se chega à maior referência política da segunda metade do séc. XX, início do séc. XXI.
Exemplo que não frutificou, quando vemos os especuladores dos preços do petróleo e dos alimentos a mostrar ao mundo que são eles quem dita as regras e não o grupo do G 8, quando se reúnem periodicamente para comer umas trufas, em castelos cada vez mais fortificados e cheios de comida, para não ouvirem o “apoio popular” que as suas reuniões suscitam. Na Europa, são os parlamentos a ter de aprovar o Tratado de Lisboa, pois quando perguntam às pessoas, como na França ou na Irlanda, levam um rotundo “não”, perante a indignação do sr. Durão Barroso, e a satisfação da maioria dos europeus. Por motivos que todos nós sabemos no nosso dia-a-dia, que vão tornando o mundo cada vez mais perigoso, e em que o futuro não se resolve metendo a cabeça na areia.
Por cá, continuamos a ver o senhor governador do Banco de Portugal e demais administradores com salários obscenos e acima dos seus congéneres americanos, e com demais regalias salariais definidas por eles próprios, no que aliás foram seguidos pela generalidade dos gestores públicos. E lá vão saindo na imprensa os escandalosos gastos de muitos dos nossos gestores em telemóveis, carros de serviço e nas águas e bolachinhas que não faltam nas múltiplas reuniões destes servidores do povo. Quando António Sérgio falava nos “oportunistas das democracias frágeis” sabia perfeitamente o que estava a dizer. E quando comparámos a nossa revolta com o que víamos antes do 25 de Abril e vemos agora, sob a capa da democracia, muita coisa vai ter de mudar, nomeadamente entre o primado do oportunismo e as nomeações por competência. Porque a chamada democracia tem, de facto, de ter, nas pessoas e nas instituições, uma superioridade ética e representativa, sobre os regímens repressivos e ditatoriais de má memória, contra os quais lutamos. Sob pena de vermos uma mera substituição de pessoas, em tantos casos bem mais medíocres e oportunistas.
É isto que, para além do folclore e oportunismo da CGTP, justifica a insatisfação das pessoas não só nas ruas mas principalmente nos silêncios, e o “não” europeu da França e Irlanda, a revolta mundial contra os especuladores do petróleo e produtos alimentares.
De facto vamos ter de repensar o funcionamento e os resultados da democracia em liberdade, que de facto tem distribuído riqueza e benesses pelos políticos e gestores públicos, enquanto pede permanentes sacrifícios nas sucessivas crises, aos mesmos de sempre, que têm direito à indignação e que certamente vão estando cansados de “tudo isto”.
Somos cada vez menos a ir de férias, a pensar em”tudo isto”. Vamos ver se somos cada vez mais a regressar ao trabalho.

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