Penalty!

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Rui Sousa Santos

médico

<i>“(…) O que me inveja não são esses jovens, esses fintabolistas, todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino? (…)”</i>
Mia Couto (<i>in <b>O Fio das Missangas</b></i>)

No momento em que este número do “Correio Alentejo” chega às bancas estaremos a cinco dias de comemorar o trigésimo terceiro aniversário do 25 de Abril. Chega a altura de fazermos o exercício que, afinal, sempre fazemos no íntimo de nós (a minha geração e a mais velha, pelo menos) todos os anos por esta altura e concluímos, sempre, que valeu a pena. Valeu bem a pena: o Portugal de hoje não tem rigorosamente nada a ver com o de 74, excepto parte dos portugueses e o território. Mas este está transfigurado, vive-se hoje, mesmo com todas as contingências e limitações conhecidas, muito melhor do que há trinta anos atrás. Basta ver a série de programas que a RTP tem exibido, da autoria de António Barreto, em que este sociólogo, mesmo com a visão acinzentada e pessimista que o caracteriza, evidencia a mudança que transfigurou o país.
A questão é: o país mudou, mas as pessoas? Há mesmo um modo característico e inelutável de ser português? Num país que adiou até ao insuportável reformas estruturais que têm de ser feitas, verifica-se um fenómeno sociológico deveras interessante. A grande maioria dos cidadãos está de acordo com a necessidade de as levar a cabo. Muita gente tem consciência evidente do despautério que prevalece, ainda, em áreas comuns da vida quotidiana de todos nós. E que pagamos, mais ou menos alegremente, com o dinheiro dos nossos impostos. Mas há, sempre, um lugar para a culpa que, ao contrário do que diz o dito popular, não morre solteira aqui, antes padece de poligamia. A culpa é sempre <b>deles</b>, dos <b>outros</b>, da cáfila, dos políticos (dos professores, dos médicos, dos juízes, dos polícias, eu sei lá). Mia Couto, moçambicano que é de cultura de forte componente lusa, põe bem o dedo na ferida: na metáfora do futebol, somos verdadeiros especialistas em arbitragem. Apito, dourado ou não, nos beiços, fartámo-nos de marcar penalties. Mas nunca contra nós. Sempre contra os <b>outros</b>.
Pegue-se nos jornais e revistas deste fim-de-semana. As qualificações académicas de Sócrates, o encerramento da UnI, as parvoíces do Alberto João, as escorregadelas de Cavaco, a sentença pífia (mais uma) do Supremo, só para não sair da página seis do corpo principal do “Expresso”, aberto na minha mesa de trabalho. O que é que isto representa? Por um lado, claro, liberdade de imprensa, a defender até à morte, se preciso for. Mas, na procura de culpas e de culpados, passa-se sempre ao lado da verdadeira génese dos problemas. Educação e ensino superior: após Abril democratizou-se o ensino. Era inevitável. Cometeram-se erros, o maior dos quais, a meu ver, terá sido a extinção do ensino técnico-profissional. Inevitável, se calhar, no contexto histórico da decisão. Abriram-se imensas escolas. Formaram-se muitos milhares de professores, para mais milhares de alunos. Reviram-se e elaboraram-se múltiplos programas de ensino, muitas vezes com pouca razoabilidade, dizem. Mas deu-se acesso à educação a quem não a tinha. Qualificou-se, melhor ou pior, grande parte da população, adaptando-a minimamente às progressivas exigências do mercado de trabalho e emprego. Mas tudo isto tem efeitos colaterais, provavelmente muitos deles também inevitáveis. As universidades privadas pulularam, em determinado momento. Muitas delas criadas à volta de personagens oriundos da extrema-direita que suportava o antigo regime, de extracção mais ou menos universitária. Outras menos. Com os <i>numerus clausus </i>das universidades públicas a limitarem o acesso, a procura das privadas foi grande. Ao longo dos anos foram surgindo os problemas: Livre, Moderna, agora a Independente. Licenciaturas a metro? Em algumas situações não repugna admitir a possibilidade. Mas professores a metro, também muitos. Fazer o quê? Anular diplomas de licenciatura? E as privadas que funcionam bem?
Quem se farta de soprar, é melhor engolir o apito. Pode sobrar cartão, não obrigatoriamente amarelo.

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