Os independentes do costume

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

António Revez

<i>Um dos sites televisivos noticiosos que exclui uma secção de Política – a TV Évora, ainda em fase experimental mas já com uma longa entrevista ao presidente da câmara – promete que o site estará “fundamentalmente atento ao lado positivo da nossa região” e diz mesmo que o debate é para ficar à margem: “Mais do que criticar, vamos realçar o que de bom se faz por cá. E é muito!” Não há política, não há polis, não há debate, não há crítica, não há oposição, tudo são flores positivas com que o poder cobre o manto do espaço público. É a política sem política. É a política do poder papagueada em órgãos de “informação”.</i>
<b>Eduardo Cintra Torres,
in “Público” (14/04/2007)</b>

<i>Assim se confirma pouco a pouco a ideia, necessariamente revoltante, de que em sociedades democráticas, a comunicação seria assegurada por empresas comerciais que têm por função principal fornecer leitores-auditores-telespectadores aos publicitários.</i>
<b>Ignacio Ramonet,
in A Comunicação social vítima dos negociantes</b>

Numa região carenciada de produtos jornalísticos e comunicacionais “intervenientes”, críticos (para o bem e para o mal), que estimulassem e criassem “opinião”, que funcionassem também como um contraponto plural à propaganda dos poderes públicos e às suas caixas de ressonância (boletins municipais, sites oficiais, blogues arregimentados, jornais subsidiados, rádios “satélite”, etc.), o advento dos sites televisivos podia constituir uma “mais-valia”, como se diz agora. Mas depressa se esfumou essa possibilidade. Depois da híbrida e moribunda TV Alentejo, surgiu engalanada a TV Beja e, agora, a TV Évora: anedóticas montras com moldura “televisiva” para as vaidades expositivas dos notáveis miúdos e graúdos da terrinha, e distribuidores de rebuçados de visibilidade instantânea para a malta anónima. Nem sequer é a “política sem política”, que refere Eduardo Cintra Torres, é menos do que isso, porque não há intencionalidade ideológica, e é para além disso, porque integra uma assumida estratégia empresarial que faz do serviço e produto comunicacional bajulatório, um veículo de captação de anunciantes institucionais e privados. Não é só a recusa da política enquanto lugar de disputa que divide a opinião e separa as posições, é a transformação da política na mais falsa e revoltante inocuidade.
O imperativo categórico destes “empresários” provincianos de comunicação social é claro: “não levantar ondas!”. Ou seja: interditar a temática e discussão políticas, a polémica, as análises dissonantes. Ou seja: seleccionar os acontecimentos “neutros”, filtrar tudo o que “cheire” a polémica, e enfatizar tudo o que entre nesse cu aberto da aclamação promocional e laudatória: as feirinhas, as festas, os certames, os pomposos momentos “corta-fitas”, as inaugurações, as entrevistas “em profundidade” lambe-botesca. São pintores cor-de-rosa, mesmo que o mundo aqui em baixo apodreça na escuridão ou na politiquice suja. São hábeis ilusionistas estes “comerciantes” de notícias, e percebem do ofício, não haja dúvida. Uma cortesia elogiosa abre sempre portas! Uma vénia noticiosa espreita umas migalhas de publicidade. Não há protocolo editorial, não há jornalismo, não há fidelidade à realidade social e política. Há verniz, há parolice, há entretenimento sofrível em versão artesanal e risível. Há uma dependência absoluta face ao “fait-diver”, à agenda “paroquial”, ao calendário festivaleiro, às notícias e “reportagens” com potencial de retorno financeiro…
E vale a pena prestarmos mais atenção ao “coordenador” da TV Évora, na “peça” da apresentação do projecto. Este senhor, antigo jornalista do muito “independente” “Diário do Alentejo” e ao mesmo tempo, à época, “adepto” comunista, parece que abandonou a dupla militância (legítima) no comunismo e no jornalismo. Agora é um “coordenador” de entretenimento, como dizer…, exortativo! O que também é, registe-se, absolutamente legítimo, tal como retratar a verdadeira face destes “entreteiners” pós-comunistas, mas que conseguiram manter uma bem profícua e privilegiada “relação” com os autarcas camaradas. Diz ele, o mesmo coordenador da TV Beja, TV Ovibeja, TVmaiSul e certamente doutras TV´s que virão, que é um projecto “sem religião e sem partido”. Penso que terá querido dizer que é um projecto independente. Pois eu creio que ele não está a ser “isento e objectivo”, como também anuncia ser ou vir a ser. Acho que é um projecto tutelado por um “partido” de tipo confessional: o partido da angariação publicitária em troca de amansos de pêlo. E como estas práticas de boa convivência “mercantilista” sempre tiveram sucesso entre nós, ainda para mais agora que todos tossem a intoxicação da política (essa tremenda “seca”), muito por culpa dos actores políticos tradicionais, augura-se-lhes longa e promissora vida.
Ou muita coisa teria de mudar.

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