Há homens e mulheres que se esquecem do seu passado. Nada nas suas raízes os motiva, nada do seu berço os cativa. Tudo os entedia. Com olhares modernos e pensamentos de vanguarda, põem uma pedra sobre o assunto e não falam mais nisso. Querem ser o Omega renegando o Alfa. Querem desaguar na foz, esquecendo a viagem desde a nascente. Querem dar flor, dispensando o tronco.
O passado é, depois da nossa mãe, um segundo útero, uma barriga quente e grande onde aprendemos as regras da vida e nos preparámos para aquilo que somos hoje. O depois é sempre o reflexo do antes.
Podemos entretanto ter mudado de casa ou de rua ou de terra, mas nunca conseguimos mudar de passado. Ele é uma vereda, um caminho, o corrimão do tempo, ao qual, para não cairmos e não nos perdermos de nós, viemos agarrados até agora.
Saber respeitar o tempo que vive lá atrás é um ato de amor, é dar um beijo aos pais, um abraço aos avós, é limpar o pó das fotografias dos antepassados e pendurar as molduras deles todos na sala de visitas da nossa vida.
Precisamos de saber de onde vimos para podermos perceber para onde vamos.
No sangue trazemos a chave do tempo e do horizonte.
Há quem lhe chame destino.
E se os homens e as mulheres têm passado, também obviamente as terras o têm.
Mas o das terras é muito maior, muito mais profundo, muito mais complexo, pois é a soma de todos os corações civis registados na Conservatória, desde que o ser humano decidiu documentar a sua existência. E para tal há duas certidões (ou seja duas certezas): a de nascimento e a de óbito.
E do passado das terras ainda cuidamos menos. Parece mesmo que não nos diz respeito. Olhamos para as ruas, para uma chaminé, para o adro da igreja, para o cemitério, para o pormenor de um anjo a suportar o beiral de um telhado, para um forno de pão, para as casas, para uma praça, para uma estátua, para um painel de azulejo, para umas lucernas, para um quadro, para um livro, para uma árvore, para as instituições todas e nem nos lembramos, nem sentimos curiosidade, nem queremos saber quem sonhou, quem decidiu, quem ergueu tudo isso. Não procuramos nunca saber quem foram essas pessoas valentes, sonhadoras, solidárias e desinteressadas, que sob a fragilidade da dúvida, sob a espada da má-língua, sob a ameaça da desconfiança, mas sempre ébrios de excitação e prenhes de futuro souberam estar à frente do seu tempo.
Pela importância que têm não podem ser só nomes inscritos na esquina de uma rua ou na placa de mármore de uma praça. O nome de cada um destes homens e destas mulheres é um baú de lembranças. Uma arca de tesouros que não podemos deixar fechada porque estas memórias não são mais do que os códigos genéticos das nossas vidas, o ADN dos nossos sonhos, o fermento da nossa essência, o ventre do nosso fruto.
Precisamos de saber que num banco de jardim, no balcão de madeira de uma taberna, na mesa gasta onde se joga às cartas, numa parede de taipa, numa moda a despique, no adivinhar do tempo, no tempero das azeitonas, no palco das festas, nos estatutos de uma associação vive ainda a arte, o engenho e a alma dos nossos antepassados.
Uma terra que renegue o seu passado não terá futuro.
Ficará órfã, perderá rumo, não terá farol, caminhará às escuras.
Se não houver uma transição de conhecimentos, de tradições, se não for feita uma passagem de testemunho, uma respiração cultural boca a boca, morre quer o passado, quer o futuro. Perde-se o presente.
Uma terra não pode perder a sua memória, os homens e as mulheres que a habitam têm de ser os seus fiéis depositários.
Para que a identidade não se perca, têm de manter viva essa memória e legá-la aos seus descendentes, porque ela é o sopro da vida.
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O concerto da harpista austríaca Elizabeth Plank é um dos destaques do programa do festival “Terras Sem Sombra” (TSS), que neste fim de semana, dias