O barbeiro da Carris

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Paulo Arsénio

eleito pelo PS - AM Beja

As crises têm destas coisas: mostrar cruamente algumas das piores facetas do ser humano, sempre em nome do equilíbrio orçamental e do bem geral, como se um país ou uma empresa se gerissem como se gere um orçamento familiar. Nada mais falso.
Uma dessas facetas é a inveja. Ou melhor: provocar a inveja em outros para que todos se revoltem contra determinada classe, profissão ou empresa. Corta-se o privilégio individual ou geral e é suposto ficar toda a gente mais feliz. Menos os visados, claro.
Alguns, na ânsia de descobrirem privilégios de trabalhadores – esses malandros que só querem ganhar o dinheiro no final do mês sem fazerem nenhum, esvaziando os cofres do Estado e das suas empresas – nem têm noção do ridículo em que se colocam.
Agora descobriram que os trabalhadores da Carris, empresa que dá milhares de euros de prejuízo anuais, têm, imagine-se, um barbeiro que corta cabelos “de borla” aos funcionários no activo e aos aposentados da companhia. Ora aí está uma das grandes causas da crise da nação: a Carris ter um barbeiro! Onde é que já se viu tamanho privilégio? E nós, os demais, temos de pagar cada vez que queremos dar um toque no cabelinho… E têm 30 dias de férias. E os outros trabalhadores têm menos.
De forma clara: o que me interessa que a Carris tenha barbeiro e eu não tenha? Qual é o problema? E 30 dias de férias anuais qual é o problema? Conduzir autocarros e eléctricos durante horas a fio, por turnos, na cidade de Lisboa é, ou não, uma tarefa desgastante e dura? E já imaginaram Lisboa sem eléctricos e sem autocarros? Eu tenho 27 dias anuais, mas não me oponho a que outros tenham 30. Parece que na Alemanha, locomotiva da economia europeia, é onde se tem maior número de dias de férias da Europa. No mínimo 30 dias.
O que se pretende é claro: provocar o descontentamento das pessoas em geral contra um grupo, de forma a legitimar decisões políticas que diminuam consideravelmente os direitos das pessoas (trabalhadores) visadas.
No fundo, cortam-se direitos, aumentam-se preços e solicita-se que se trabalhe mais. Mais horas por dia, ao longo de mais anos ao longo da vida, por menos dinheiro e com muito menos direitos sociais.
E não querem que as pessoas se revoltem?
Os direitos sociais resultam de acordos que em muitos casos compensam os salários mais reduzidos. E os bónus de produtividade sempre foram aplicados no sector privado, mas agora há quem também queira vê-los banidos do sector público, nas empresas e nos serviços onde estão implantados. Notável! É-se preso por ter cão e por não ter, de acordo com o ditado popular.
A questão política do momento consiste, em nome do combate à crise que na gestão Sócrates era só nacional mas que, agora, Passos Coelho e Carlos Moedas descobriram que, afinal, é internacional, em “nivelar”. Mas em nivelar por baixo, sobretudo os funcionários públicos e os empregados do sector empresarial do Estado.
Em nivelar toda a gente com perda de rendimentos. Em nivelar toda a gente com ausência de direitos, prémios ou regalias. Em nivelar toda a gente pelo mínimo no que toca a benefícios sociais. Em nivelar as pessoas pelo máximo ao nível dos deveres e pelo mínimo ao nível dos direitos. E manter as pessoas a culpar permanentemente outros sectores da sociedade pela sua própria situação. Todos insatisfeitos com todos, acusando-se mutuamente. E o ataque aos direitos das pessoas passa de forma quase desapercebida.
É inteligente. E este Governo tem feito, registe-se, esse exercício com grande mestria. Alguém coloca cá fora nos jornais e dias depois, com as pessoas surpreendidas, anuncia-se o corte do apoio, do prémio, da bonificação ou de outro qualquer direito. Sem que os visados possam sequer reagir. A população já está virada contra “esse direito”.
Tudo tem de dar lucro. Cortem-se direitos, reduzam-se salários e aumentam-se brutalmente preços. Isso é bom para estimular a economia do país segundo algumas pessoas que estudaram longos anos economia nas universidades. Vê-se, acrescento eu, pelos números do desemprego.
Mas perguntemos: alguém acredita que, por exemplo, empresas como o Metropolitano de Lisboa, a Carris ou a CP possam dar lucro? Mas desempenham ou não um papel fundamental no país e na cidade onde operam para que milhões de pessoas possam viajar e trabalhar diariamente?
Isto de provocar a inveja e a revolta de trabalhadores contra direitos detidos por outros trabalhadores (não estou a falar de membros de conselhos de administração, chefias ou dirigentes. Falo de simples trabalhadores/empregados) é um péssimo hábito nacional, mas que funciona na perfeição, e que ganha particular expressão sempre que forças de direita chegam ao governo no país.
Já agora e para terminar: o barbeiro da Carris não foi incluído no acordo com a “troika”, portanto deixemos o homem barbear em paz.

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