O Baile

Sexta-feira, 4 Novembro, 2022

Vitor Encarnação

Escritor

Levanta-se sempre cedo. Por hábito nos outros dias e por inquietação aos domingos.
A casa dorme ainda. Nas noites de sábado para domingo a casa dorme mais do que ela. A casa deixa-se ficar na modorra das mantas de lã, na preguiça do gato, deixa-se envolver no escuro, no silêncio das duas assoalhadas, nos estalidos dos móveis velhos, enrosca-se na alcatifa, estende- se no sofá, descansa na cadeira de braços, repousa no divã, boceja na cama.
É domingo de manhã e a casa quer dormir, mas ela não deixa. Ergue-se da cama, acende a luz, rasga o escuro, liga o rádio, desliga o silêncio, faz a cama, desfaz o sono do gato, arruma uma só almofada.
Veste o roupão e abre os cortinados. Lá fora o breu ainda está pendurado nas paredes, deitado nas ruas, ainda a noite escorre cansaço no leito dos amantes, ainda os candeeiros da rua são faróis que levam bebedeiras para casa, ainda os pássaros estão à espera que um misterioso código de luz os desassossegue, ainda o pão coze nos fornos, ainda a lua se faz crescente no quarto do céu.
Já é tempo de começar a viver e por isso antecipa o dia.
Põe cremes de rosto, gel de aromas, perfumes doces. Penteia- se, veste a cinta e depois põe a placa dos dentes.
Tem ainda oito horas pela frente. A amiga só passará por sua casa depois de almoço.
Agora já não se envergonha de ir ao baile, mas da primeira vez foi como se fosse trair o marido. Quando a convidaram para ir ao baile da terceira idade da Sociedade Filarmónica, disse logo que não. Era incapaz de ser infiel, de enganar os votos e as promessas.
A fotografia do marido não a deixava. Era uma fotografia grande pendurada na sala de jantar, coisa omnipresente, de olhos de papel e de vidro, uma memória de pancada, uma punição emoldurada que dominou o espaço durante longos anos. Um altar de medo subjugando a pobre crente. Não havia uma roupa, um penteado, um desejo que não passasse pelo crivo da fotografia. Afinal ele fora o seu primeiro e único homem e, Deus lhe perdoe, um mau pai, mas ainda assim o pai dos seus filhos. Uma doença má levara-o havia quinze anos, mas muito mais depressa se desfizera o corpo no caixão do que o feitiço da fotografia.
Lentamente, como quem redescobre a puberdade aos sessenta e tal anos, começou a desafiar o rosto altivo do marido. Uma saia mais colorida, o cabelo pintado. O rosto do marido a contorcer-se de raiva. Depois o telefone, uma televisão a cores, um cartão Multibanco.
A cinza do corpo do marido às voltas no caixão.
Hoje, neste domingo, já o marido e a fotografia são pó.
Neste domingo já esta mulher não reparte a comida com a fotografia e nem vai ao cemitério depois de almoço.
Neste domingo, ela vai ao baile depositar flores nos vivos.
Abre a cómoda e escolhe umas meias de vidro. Os sapatos são de cunha, bons para o volteio da dança. Do guarda-vestidos escolhe uma blusa verde a condizer com os olhos e com a esperança que tem. Comparando a excitação e a saia, é fácil de ver que só esta última é travada.
Almoça com o pequenino apetite da paixão. Veste-se, pinta-se e sai de casa sem olhar a fotografia. Apenas um prego ferrugento sustenta já aquela memória.
No baile da Sociedade Filarmónica as pessoas são muito mais velhas do que a puberdade, são mais velhas do que a maternidade e a paternidade, são até mais velhas do que a menopausa e a andropausa, são avós de netos grandes, mas de facto não parecem sê-lo. Vestidos às flores e fatos cinzentos com colete e gravata vestem gente viúva, divorciada, solteirona. Cavalheiros e damas em jogos de sedução.
Portes distintos, outros menos luminosos Todos à procura do tempo perdido. Esta avó tem catorze anos, aquela tem quinze, este avô já vai tendo barba, aquele veio de muito longe numa bicicleta a pedal.
Trocas de olhares, amuos, conquistas.
A um canto da sala, tontos de espanto, descansam duas paixões que ainda se encontraram a tempo. Valsas, tangos e marchas gozando com a morte, com a Alzheimer, com a Parkinson, com as cataratas, com a solidão, com os pacemakers, com a diabetes, com o colesterol, com a reforma miserável, com o desprezo pela velhice.
A menina dança?
E ela, com uma blusa verde a condizer com os olhos e a esperança, diz sim e cora um bocadinho.

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