Da confluência das estradas IP2 e N4 nasceu um projeto artístico. Ao lado ou ao longo dessas duas vias de comunicação e de viagem vivem pintores e escultores que até há bem pouco tempo nunca se tinham cruzado, ou apenas circunstancialmente o tinham feito. Decidiram agora convergir para um mesmo espaço e um mesmo tempo.
Este movimento artístico é atualmente composto por Júlio Jorge, Carlos Godinho, Francisco Rato, Joaquim Rosa, Flávio Horta, Pedro Pinheiro e Manuel Casa Branca.
Para darem visibilidade ao seu movimento, aquando da sua exposição coletiva na Vidigueira, decidiram publicar um livro que explicasse o projeto e os explicasse a eles próprios através das palavras de João Luís Nabo, Eduardo Nascimento, Silvestre Raposo, M. João Pina, Daniel Jubilot, Miguel Rego e Paulo Nascimento.
Também para essa mesma ocasião, tive o prazer e a honra de ter sido convidado para redigir umas palavras prévias para essa publicação que tem o patrocínio da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito. É esse texto, fundamentado na imensa admiração pela arte que eles criam e pelas emoções que me provocam, que quero partilhar convosco.
De Sul a Sul
Há artistas que se levantam antes dos pássaros e pintam e esculpem de Sul a Sul.
Avassalam a cor como se esta fosse o absoluto desejo, buscam a sombra como se esta fosse a alma da transparência, almejam a forma como se esta fosse a ordem e o significado de todas as coisas, mergulham na pedra branca como se esta fosse água, procuram a luz como se esta fosse as pupilas dos olhos.
E quando esse tempo plano e luminoso não chega, quando o Sol se cansa de claridade, quando essa demanda é maior do que o tempo dos pássaros, eles penetram a noite com as mãos e é, muitas vezes, a horas mortas que se ouve o choro final da criação.
As estradas diferentes que eles percorrem convergem todas para o mesmo lugar, por onde quer que andem, por onde quer que vão e se inquietem e se procurem, por onde quer que se percam para depois se poderem achar, esses horizontes de tintas, esses caminhos de pedra, vêm todos dar à casa da criação.
É a força da gravidade da arte que os junta e essa gravidade faz com que a obra dispersa se aglutine, faz com que o que é desigual se una, faz com que o que é diverso se funda nos olhos de quem vê, no pensamento de quem questiona, no coração de quem sente. Olhos, pensamento, coração. Da nascente até à foz. Do criador até à obra. Da obra até às pessoas.
A essência transtagana revela-se, mais moderna ou mais tradicional, mais realista ou mais abstrata, a alma desta terra expõe-se. O mesmo útero concebe filhos distintos, olhos, mãos, processo, conceção, técnica, construção, mas filhos da mesma memória, frutos da mesma raiz, contemporâneos, conterrâneos.
O criador é o criador e a sua circunstância, o resultado de uma aprendizagem, de uma maturação, de um particular modo de traduzir o mundo. Cada criador traduz o mundo à sua maneira, explica-o, revela-o, desconstrói e constrói, apresenta alternativas, ensina-nos a perguntar, ativa a nossa sensibilidade, vai resgatá-la aos confins da nossa rotina, do nosso aborrecimento, ensina-nos a ver a parte de dentro, a parte de dentro da arte, mas também a nossa parte de dentro tão ocupada com a espuma dos dias.
O criador convoca-nos para que nos entreguemos à tela, à aguarela, à madeira, à pedra. E que perscrutemos, pois tudo pode não ser o que aparenta ser, tudo pode ser outra coisa diferente do que a realidade formatada nos tem dito.
A arte é uma porta, um horizonte, uma estrada. Os artistas são os mestres da nossa própria fuga.
Rugas, memória, rostos, céu, terra, fusão, dualidade, fragmento, brado da pedra, cores com asas, cores que são voz e que são música e que são silêncio, almas com olhos na cara, tábuas de salvação, peluches de carne, corações que esperam.
Tudo a girar à volta do Sul.
Nota: A próxima exposição do Movimento IP2N4Art terá lugar na Galeria 9OCRE, em Montemor-o-Novo, entre os próximos dias 23 de julho e 3 de setembro.