Mestre Vargas, Um Barbeiro Invulgar

Napoleão Mira

Escritor

Desde pequeno que tenho uma cisma com barbeiros. O primeiro que me vem à lembrança era um desses profissionais itinerante que, duas vezes por mês, em dia e hora aprazados, assentava arraiais no largo do bairro onde eu morava para cortar o cabelo aos mais pequenos. Todos as ferramentas do ofício eram por ele transportadas dentro de uma caixa vermelha de madeira de que nunca se apartava. Dizia que ali dentro, para além de pentes, tesouras, máquinas de cortar cabelo, navalhas de barbear, borrifadores, sabão ou perfumes vários, também ali residiam muitos dos segredos deste barbeiro/contador.
Não era um homem, Era um urso! Pesaria pelo menos cento e cinquenta quilos e mediria mais de um metro e noventa, o que, para uma criança pequena e lingrinhas como eu, fazia dele um dos maiores seres vivos que os meus olhos alguma vez haviam visto, só suplantado pelo gigante de Moçambique a quem apertara a mão na Feira Popular de Lisboa. Era grande, mas não era grande coisa! Era um homem doente. Arrastava uma das pernas gangrenada ( ou seriam as duas?), movimentava-se a muito custo e com uma respiração ofegante e aflitiva, enquanto que, das suas entranhas, exalava um hálito a alho e a podre que não anunciava nada de bom. Todo este quadro fazia uma certa aflição à pequenada que, ordenada em fila indiana, aguardava a sua vez para ser destrunfada.
A outra particularidade deste profissional da itinerância capilar era a de ser o melhor contador de uma única e infindável estória. Ao primeiro que se sentava, de tesoura e pente em punho, iniciava o interminável relato. Contava a saga de um povo distante que, à custa de muito calo e sacrifício, lavrava, semeava, mondava, rezava, ceifava, juntava e arrecadava o fruto do seu labor, para mais tarde poder contar com o sustento até à próxima colheita. Guardava-o num celeiro hermeticamente fechado e de enormes dimensões. Assim uma coisa que, nas suas palavras e enquanto tesourava o cabelo do primeiro cliente, tão grande ou maior que o largo onde prestava o serviço, que era também campo da bola. Só para se ter uma ideia de grandeza do que estamos a falar!
Até que um dia, uma formiga que havia desertado lá do seu exército, cheia de fome e desesperada, deu de caras com aquela parede imensa, mas… impenetrável! Percorreu todo o perímetro do celeiro e nem uma única racha, uma frecha, um buraquinho por onde se esgueirar de modo a nele penetrar, de forma a alcançar o “el dorado” que se adivinhava para lá daquele gigantesco obstáculo.
Mais ou menos por altura de preparar a brilhantina e apartar a marrafa do penteado ao primeiro cliente, Mestre Vargas, como era chamado, sentindo a audiência na mão, inamovível, baixava o tom de voz, arregalava os olhos e, num golpe de teatro previamente ensaiado, desvendava por onde entrara a ousada formiga. “Foi pelo buraco da fechadura!” – exultava abrindo os enormes braços, sabendo-se dono e senhor da atenção da pequenada.
Chamava o segundo cliente e prosseguia o relato, depois de sacudido de cabelos e, voltado a apertar com um nó de aselha, o pano que circundava o pescoço de cada gaiato. A formiga desertora, ao dar de caras com aquele tesouro, carregou como prova do seu achado o único grão de trigo que o seu peso permitia e, depois de um longo e pesaroso caminho, regressou cabisbaixa ao exército que havia abandonado. Arrependida, pesarosa, rogou à formiga chefe o seu perdão, ao mesmo tempo que anunciava a espantosa descoberta através da prova que consigo carregava.
A rainha das formigas ponderou os prós e contras da decisão que teria de tomar. Numa situação normal, o mínimo seria condenar a desertora a trabalhos forçados e à censura pela restante comunidade, mas perante tão sincero arrependimento e, ainda por cima, com a descoberta anunciada de tal fartura para anos vindouros, decidiu indultá-la e proibiu todas as outras de a criticarem fosse qual fosse a circunstância. Exercia-se assim o poder magnânimo de quem nasceu para mandar!
Prepararam-se os batalhões e marcharam ao encontro do tal tesouro. Andaram horas, dias, numa interminável fila. Ultrapassaram planuras, rios, vales e montanhas para atingirem o seu fim. Aí chegadas, repararam que por aquela fissura só podia entrar uma de cada vez, entrave esse que remetia para as calendas gregas o final da operação. Só havia duas soluções: desistir ou prosseguir. E mesmo sabendo que tinham à sua frente triliões de bagos de trigo, o conselho deliberativo resolveu prosseguir. Nesse sentido, deu ordens para começar a grande operação.

Então, entrou a primeira formiga e retirou um grão de trigo.
Entrou outra formiga e retirou outro grão de trigo.
Entrou outra formiga e retirou outro grão de trigo.
Entrou outra formiga e retirou outro grão de trigo.
Entrou outra formiga e retirou outro grão de trigo.
Entrou outra formiga e retirou outro grão de trigo.
Entrou outra formiga e retirou outro grão de trigo.
Entrou outra formiga e retirou outro grão de trigo.

E assim, durante as horas que ali permanecesse, prosseguia aquele mantra hipnótico em que, ao som do arrastar do seu corpo doente e das sincopadas tesouradas, entrava uma formiga e retirava um grão de trigo. Entrava outra formiga e retirava outro grão de trigo.
Sendo esta uma operação que duraria até ao fim dos tempos, pelo menos dos seus, que não tardaram em chegar, quando no dia aprazado, Mestre Vargas não apareceu. Correu célere sim… a notícia do seu desaparecimento.

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