“Menina Encantada” é o nome de um navio que costuma estar amarrado no porto de Sesimbra, ao lado de muitos outros. Uma vez, ao reparar nele num dos meus passeios, lembrei-me da Susana.
A Susana é minha aluna e é também uma menina encantada.
Não vou fazer-lhe aqui um elogio; vou, sim, elogiar os pais dela. A Susana tem uma idade na qual ainda não se conquistaram virtudes. Nessa fase da vida ainda não temos virtudes próprias: reflectimos as virtudes de quem nos educou.
Uma vez disse-lhe que tinha uma grande admiração pelos pais, o que a deixou espantada, visto que nunca tive o gosto de conhecer pessoalmente os senhores. Podia ter respondido ao seu espanto dizendo que sim, que conhecia muito bem os pais porque a conhecia a ela. Mas preferi não o fazer. Um dia ela compreenderá por si mesma a verdadeira razão. Levei o caso para a brincadeira. Disse-lhe: “Eles aturam-te pacientemente há muitos anos, e eu, só de te aturar durante três horas por semana, já tenho vontade de te atirar pela janela…”.
A Susana é uma menina encantada, com um encanto muito mais do que superficial. Tem assim uma espécie de perfume interior que se sente e não se sabe explicar bem. É agradável estar ao lado dela. Os colegas procuram-na, sentam-se à sua beira, brincam e conversam com ela. A escola não é bem a mesma coisa quando ela não está. Não tem graça pensar num programa se ela não puder estar presente.
A Susana tem uma aparência que não dá nas vistas; não é rica; veste-se modestamente; não fala alto. Escuta o que os outros dizem. Não se pinta, como sucede com algumas das companheiras. Mas está sempre contente. Quando tem o que desejou e quando não o tem. Porque também lhe passam pela cabeça todas as coisas que passam pelas cabeças das colegas. Uma vez ouvi-a dizer que não usava não sei que género de brincos, destes modernos, porque os pais não a deixavam usá-los. Não era uma queixa; foi uma coisa que veio à conversa, em grupo, durante um intervalo, com a maior das naturalidades.
A Susana fez-me pensar.
Todos gostam de estar com ela porque está sempre bem-disposta. E está sempre bem-disposta porque se habituou a aceitar e a obedecer. Quando nos habituámos a não esperar muito da vida, qualquer coisinha nos deixa contentíssimos.
Ora isto é o contrário do que se passa com tantas e tantos, que se tornaram constantemente insatisfeitos e rabugentos por terem sido acostumados a ter aquilo que desejavam: aquilo que viam nas montras, os pratos preferidos, os objectos e brinquedos que viam os outros usar na escola, certas marcas de roupa. Quando alguém vai por esse caminho, deseja sempre mais, sempre diferente, sempre melhor, sempre mais caro, sempre novo. E passa de uns campos para outros, até chegar ao convencimento de que tem direito a que a vida satisfaça todos os seus desejos.
Às vezes não reparamos bem no alcance de certas coisas que fazemos enquanto educadores. A verdade é que quando damos a uma criança todas as coisas que ela deseja lhe damos também o aborrecimento. E a incompatibilidade futura com as arestas da vida.
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