Memória mineira

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Miguel Rego

arqueólogo

O Alentejo celeiro da nação, das searas douradas a perder de vista e dos passos dos malteses nos pastos ressequidos depois das ceifas são algumas das imagens que marcam o imaginário desta região. Não apenas o nosso, mas acima de tudo, dos outros que não imaginam sequer o Alentejo rendilhado a verde, nas manhãs de Abril. Os tempos do Estado Novo e os que se sucederam com o 25 de Abril de 1974, dão corpo a este conceito. No seio de terras esqueléticas e cheias de talisca, o ciclo da sobrevivência obrigava este homem alentejano a largar à terra as poucas sementes que tinha guardado, exasperando por uma colheita farta, sempre adiada, sempre tolhida por secas eternas ou enxurradas copiosas. Ou pelo menos, que essas sementes lhe deixassem os restolhos suficientes para alimentar o rebanho até às primeiras ervas que deveriam chegar com os meses das chuvas. Mas a memória do Alentejo não se resume a estes tempos de agricultura. Ao longo de mais de cem anos, e em particular entre a segunda metade do século XIX e o início dos anos Sessenta da centúria de XX, a mineração teve um papel preponderante na economia e na sociedade alentejana e nacional. E não falamos apenas das conhecidíssimas minas de Aljustrel e de S. Domingos. Falamos da Juliana, de Apariz, da Orada, da Caveira, do Lousal, da Botefa, do Cercal, do Ferragudo, dos Namorados, da Balança e de centenas de outras ocorrências de manganês e pirite, entre outros metais, que alimentaram milhares e milhares de bocas nestas terras marcadas pela agricultura tradicional de sequeiro e latifúndio. Minas que trouxeram novas gentes a estas terras transtaganas sempre deficitária em braços. Minas que deram muitos milhões de impostos ao Estado, Estado esse que raramente soube pagar da mesma moeda em investimentos infra-estruturais que mudassem rumos e trouxessem outras certezas. No entanto, a memória desta realidade económica é quase que desconhecida de todos nós. E não apenas enquanto cultura geral de saber superficial. De saber fundamentado. E esta realidade tem que ser conhecida, na perspectiva até da sua divulgação, da sua salvaguarda e da sua dignificação, contribuindo para a criação de um novo nicho turístico, por exemplo. Pouco a pouco vai desaparecendo um dos patrimónios mais importantes destes períodos que são os homens e mulheres (!) que a trabalhar nas minas deixaram muitos e muitos anos da sua vida. E desaparecida essa ultima geração, em particular, aquela que trabalhou nas minas de manganês, o que é que fica, para além de meia dúzia de buracos e de alguns resquícios na toponímia local? Pouco mais que nada. E esse pouco mais que nada corre o risco de se perder, igualmente, na poeira de arquivos à espera de alguém que ocasionalmente passe por eles e se lembre que é necessário salvaguardar um dos períodos mais extraordinárias da nossa história socioeconómica e da memória deste Alentejo de Alqueva e “searas” de azeite. Enquanto ainda vivem muitos dos braços que rasgaram a picareta as terras de minério deste Alentejo, é urgente que se promova a salvaguarda, o estudo e a divulgação dessa memória e desse património, conciliando o olhar e o respirar do imaterial com a distância e a douta sabedoria dos arquivos adormecidos do património mineiro do Alentejo.

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