Se ela não ganhasse só o ordenado mínimo nacional (OMN) e mais aqueles trocos, de certeza que andava de Fiat Punto, fazia a revisão, a inspecção, abastecia de gasolina. E só nisto iam logo quatro empregos: o vendedor, o revisor, o inspector, o caixeiro.
Se ela não ganhasse só os quatrocentos e oitenta e cinco euros mais os tais dos trocos, ia todas as semanas dar um toque ao visual e somam-se a sobrevivência da cabeleireira, da esteticista e da manicure que iam mantendo as assistentes que iam mantendo cada qual mais uma casa de família.
Se ela não ganhasse só o OMN que prometem aumentar prós quinhentos mas não chegam lá… até ia jantar fora com ele sem ser no dia dos anos, uma vez por outra, de quando em quando. Era o homem das hortaliças do mercado, era a cozinheira, o dono do restaurante, o empregado de mesa que ela “ajudava” a garantir.
Se a ela não lhe cortassem agora metade do subsídio, com esses outros 485, punha as contas em dia: pagava parte das propinas do filho, saldava o IMI, mandava fazer os óculos e ainda comprava a prenda à sobrinha. Com o que viesse no Verão haveria de pagar o seguro, abatia a prestação da Cofidis, talvez conseguisse ir ao dentista e, quem sabe, talvez também fosse à praia, um fim-de-semana a Monte Gordo na excursão da Cooperativa.
Ai! Se ela não tivesse que pagar a casa, a aguinha, o gazinho, a luzinha. Ai! Se ela ao menos comesse ar com côdea, vento migado, chuva escalfada, tudo de marca branca. Ai!
Mas diz que ela come todos os dias e mais do que uma vez!
Diz que a vida é dura, que temos que fazer esforços, sacrifícios, empobrecer mesmo. E diz que isto é inevitável, que devemos dar graças a Deus que nos emprestaram dinheiro para pagarmos a dívida, e que ai de nós se não a pagarmos!
Diz que sim!
Diz que sim ou diz que não! Na verdade, a opção é sua! É dela! É nossa!
Se os ordenados mínimos se mantêm nestes mínimos, se o vendedor, o revisor, o inspector, o caixeiro, a cabeleireira, a manicure, as assistentes, se as elas todas deste país não investirem, se não gastarem, não há crescimento económico, não há sequer economia, não há dinheiro a circular, logo há desemprego, logo pouco investimento, logo pouco gasto, logo nenhum crescimento outra vez, logo sobrevivência. Apenas sobrevivência.
E agora se está disponível para se meter na vida dela, na vida deles, na nossa vida, se percebe que da dela depende a sua e da sua depende a dela, então digo-lhe que apesar de mais esse desconto no final do mês, ela vai fazer greve.
E aposto que leva o caixeiro, o homem do talho, o dos legumes, a assistente, a mulher que lhe cobra as propinas, a moça da papelaria onde compra as revistas de crochet, o condutor das urbanas, o que limpa o lixo do bairro, a senhora dos totolotos, o professor do filho, o vizinho desempregado, o moço que lhe serve os cafés e ………………………… aposto que com salários tão baixos, aumentos de bens e serviços e com os cortes anunciados só a greve leva a Maria a ir com as outras no dia 24 de Novembro.
<b>NOTA: </b>Em 2010, meio milhão de portugueses recebia o rendimento social de inserção. No mesmo ano, cerca de 10,5 por cento dos trabalhadores por conta de outrem, a tempo completo, recebiam o salário mínimo (485 euros). No final de 2009, 118 mil desempregados recebiam o subsídio social de desemprego (338, 35 euros).