A memória é um bem precioso e a falta de memória, o esquecimento, é uma enfermidade tremenda. Desculpável, é certo, quando os factores da vida biológica a isso levam, no arrastamento da decrepitude geral, mas indesculpável, não é menos certo, quando a amnésia é promovida e a memória negligenciada. Refiro-me às comemorações do 25 de Abril e do 1º de Maio, e ao que elas envolvem e implicam como investimento da memória colectiva e da identidade política, cívica e revolucionária de um povo. Ou ao que elas significam, actualmente, como rituais protocolares e mecanizados, estranhos e exóticos para grande parte da população portuguesa.
A verdade é que, ano após ano, o 25 de Abril e o 1º de Maio são apenas dois jeitosos e oportunos feriados, que trazem uns políticos nostálgicos ou revivalistas a lembrar um passado já assustadoramente desconhecido, e uns aplicados sindicalistas a juntar colegas entediados e contrariados, e que quase todos aproveitam muito descontraidamente para pôr em dia a limpeza do escritório, ou para concretizar o tal churrasco familiar adiado desde as férias do Verão, ou para esturrar o cartão de crédito em compras de electrodomésticos que se usam duas vezes ao longo do ano, talvez no 25 de Abril e no 1º de Maio.
A verdade é que, ano após ano, é maior o número de idosos que desaparecem sem terem sabido cultivar o legado do que sentiram na pele durante décadas, quer as agruras e as barbaridades do fascismo, quer as utopias, os sonhos, os projectos e as desilusões da revolução e da contra-revolução.
A verdade é que, ano após ano, é maior o número de adultos que nem se lembra de contar aos filhos como era no tempo dos avós, e nem contam como era no tempo em que eles eram da idade dos filhos, e corriam pelas ruas com cravos vermelhos nas mãos, e gritavam a rir os slogans do entusiasmo popular, em cima de tractores enfeitados com dizeres exortativos, entre vivas à liberdade e ao socialismo e morte ao fascismo para nunca mais! E depois vivia-se em festa até ao 1º de Maio, que os atirava para as ruas novamente, de braço erguido ao lado dos pais, a imitar-lhes também as palavras de ordem contra o capitalismo e a vibrar em bramido sentido todas as sílabas da Internacional.
A verdade é que, ano após ano, é maior o número de jovens que não faz a mínima do que foi o 24 de Abril, do que foi o 25 de Abril, e do que foi o 26 de Abril, nem do que foi e é e o que significa o 1º de Maio. Porque os avós se esqueceram de lhes contar, porque os pais estão mais entretidos com o futebol e a telenovela, e porque o nosso sistema educativo também se está a lixar para história política portuguesa contemporânea, ou se entretém, antes, com o desfile dos acontecimentos espectaculares, com as personalidades folclóricas e com os enviesamentos emocionais. E depois Salazar passa pelo maior bem feitor da pátria e Álvaro Cunhal por um um comedor de criancinhas ao pequeno-almoço, Marcelo Caetano por um democrata moderno e os capitães de Abril por uns cobardes que não queriam ir para África matar pretos, os membros da PIDE por uns senhores respeitáveis que punham na ordem terroristas e agitadores e a reforma agrária por um roubo violento.
A verdade é que, ano após ano, as comemorações do 25 de Abril e do 1º de Maio são o “picar do ponto” dos profissionais políticos da esquerda mais à esquerda e o “encontro anual” dos pais e padrastos da revolução. Sem chama, sem vida, sem mobilização.
A verdade é que, ano após ano, a memória histórica tem de ser alimentada civicamente, nutrida pedagogicamente, adubada familiarmente, regada formativamente e intensivamente, para nos lembrarmos todos os dias quem somos e donde vimos, para sabermos melhor para onde queremos ir.
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