À lei da rolha

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

António Revez

Num momento em que se clama aos sete ventos a mácula nebulosa da asfixia democrática, numa altura em que os mais empenhados barafustadores da liberdade amordaçada, de cor de laranja vestidos, se atiram ao chão indignados com o estado de miserabilidade democrática a que chegámos, esses mesmos, ainda irados de protesto, resolvem fazer um congresso partidário e decidir que o mais importante desse magno encontro é votar e aprovar uma norma que estabelece a possibilidade de punir com suspensão ou expulsão os militantes que infrinjam o dever de lealdade para com a direcção do partido, programa e estatutos, nos 60 dias anteriores a um acto eleitoral. E esta proposta foi votada favoravelmente por 352 dos congressistas, contra apenas 76 votos contra e 102 abstenções.
De facto, essa história da asfixia democrática e das ameaças à liberdade de expressão é tão assustadoramente real que até ganha honras de consagração regulamentar por parte de quem mais a repreende e contesta. Os militantes congressistas do PSD, mas os do PS e do PCP também aplaudem, definem como prioritária a eficácia e como sacrificada a liberdade e a democracia interna. A presumida coesão interna, a imagem do partido para o exterior, a esperada rendibilidade eleitoral que decorre do silenciamento das divergências e pluralismo internos (aproveitados pelos adversários para os transformar em guerrilha interna fratricida), são valores estimáveis e tidos como prioritários para os partidos portugueses mais ideológicos e mais verticalmente organizados. E quanto mais apertada e rígida é a disciplina partidária, mais sonantes e intempestivas são as insurreições de militantes e líderes opositores e descontentes. Que ganham tamanho ruído e projecção mediática em quase directa proporção à impunidade que gozam face às transgressões estatutárias que cometem sucessivamente. Por outras palavras, no BE e no CDS-PP, onde está previsto e regulamentado o direito de tendência e a livre expressão da opinião, as divergências, mais ou menos organizadas, foram “naturalizadas” e incorporadas como pressuposto indiscutível da vida partidária; e no PS e no PSD (no PCP a aplicação de sanções é levada a sério), onde ainda perduram (faça agora o PS o alarido que quiser) arreigados constrangimentos à liberdade crítica, manifesta, organizada e pública, permanece uma ostensiva impunidade face às deslealdades partidárias. Pois é bom de ver em plena campanha eleitoral, destacados dirigentes e notáveis partidários a escrevinhar infâmias fraccionárias e publicar libelos divisionistas. Tudo bem amplificado mediaticamente, o que também inibe a aplicação disciplinar.
Mas importa sublinhar que esta “lei da rolha” social-democrata é absolutamente legítima e nem choca objectivamente com a lei dos partidos nem com a constituição, pois o legislador foi suficientemente vago e evasivo quando estabeleceu a obrigatoriedade do “princípio democrático”. Porém, desde princípio emana um outro que é a “regra da maioria” e a consequente subordinação das minorias. Como se vê, a democracia interna partidária é em tese compatível com a disciplina partidária e a restrição do campo de intervenção das minorias, que, no limite da sua liberdade, poria em causa a vigência do princípio da maioria. Mas se as normas que agravam a disciplina interna são legítimas no plano estatutário e do funcionamento e organização dos partidos, elas são cada vez mais desastrosas no seu alcance e implicações políticas e eleitorais. Na verdade, os cidadãos reprovam as lógicas partidárias excludentes e castradoras, e os militantes dividem-se, entre a aprovação da coesão directiva e o dever de lealdade, e a receptividade à diferença de posições e à enunciação de alternativas, mesmo que afrontem os desideratos da liderança.
Desta discussão recolhemos a novidade de se pensar que velhos hábitos centralistas e oligárquicos têm ainda viabilidade em tempos tão desesperados de democracia, transparência, liberdade de expressão. Santana Lopes foi acometido de um pensamento mais situado temporalmente no reino dos partidos de massas e de inspiração leninista e depois estalinista, e mais justificado em ambiente de clandestinidade. Portanto, nada que tenha cabimento em clima de mediocracia vigilante e penalizadora das máquinas partidárias, ao que se junta uma cidadania política igualmente céptica em relação à democracia intrapartidária.
Mas os partidos são ainda assim, Igrejas hierárquicas e funcionais, animadas pela crença de que quanto mais se atenua ou extingue a conflitualidade interna, mais proveitoso isso se torna para as exigências de unidade e coesão partidárias, para as expectativas de reforço eleitoral, e para a aceitação dos cidadãos. Já foi assim. Agora todos esperam dos partidos uma cultura democrática de tolerância, de competitividade activa, de reconhecimento e protecção das minorias, de salvaguarda do pluralismo interno. Caso contrário, os partidos continuarão na sua lenta agonia, transformados em poisos viscosos para os indefectíveis sem opinião, ou para os opinadores convergentes, capazes de sacrificar a lealdade às convicções em favor da interessada lealdade ao sistema do qual depende o seu salário, prestígio ou carreira…

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