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Sexta-feira, 23 Junho, 2023

V

Escritor

No que toca a posicionamentos sociais que implicam escolhas, há um mundo de diferenças entre a célebre piada de Groucho Marx, “Estes são os meus princípios, mas se não gostam deles, eu tenho outros.”, e a famosa afirmação atribuída a Ernest Hemingway, “Quem estará nas trincheiras ao teu lado? – E isso importa? – Mais do que a própria guerra.”
Da frase de Groucho Marx depreende-se que o sentido de oportunidade é determinante nas escolhas que fazemos, usando e abusando quer de uma despudorada flexibilidade moral, quer de uma elasticidade na interpretação e na aplicação de princípios e valores.
Pelo contrário, a afirmação atribuída a Hemingway parece revelar um profundo sentido de lealdade e de integridade.
É entre estes dois mundos que a maioria das pessoas vive e se posiciona. A maior parte de nós achará, com razão e com lógica, que nem tanto ao mar, nem tanto à terra, nem nunca, nem sempre.
Todos nós conhecemos, ou somos em determinada fase da nossa vida, por necessidade, por avidez ou por ingenuidade, por um lado, e por determinação, hombridade e maturidade, por outro lado, exemplos mais próximos da piada de Groucho Marx ou da afirmação de Hemingway.
Por sermos seres eminentemente sociais, precisamos de estar com outros indivíduos e grupos e para tal escolhemos um dos lados da barricada, seja nas relações pessoais, no clube de futebol, na política, na religião e, às vezes, até na própria família. Há nessa decisão e nessa escolha uma procura de identidade, de pertença e de segurança.
Escolhemos aqueles que têm, em termos gerais, opiniões e gostos parecidos com os nossos e conduzem as suas vidas de forma idêntica à nossa.
Mas se radicalizarmos esses posicionamentos, toda a nossa participação na sociedade, nas suas múltiplas facetas, tudo aquilo que aprendemos e ensinamos fica contaminado pelo carreirismo, pela desonestidade, pela indecência e pela malícia, pela intransigência e pela intolerância, quer porque trocamos de princípios muito rapidamente, quer porque nos entrincheiramos como se todos os outros fossem inimigos. Nada de bom resulta de mentes oportunistas e interesseiras e nada de útil resulta de mentes inflexíveis e sobranceiras.
Dizer que se é do que der mais jeito ou dizer que quem não é por si é contra si, é igualmente desequilibrado e extrema posições. A primeira por falta de carácter, a segunda por falta de tolerância.
Estar de um determinado lado não é ter os olhos fechados, não é deixar de ter opinião, não é ignorar o outro lado. Ser de uma forma e ter um conteúdo não é anular outras formas e outros conteúdos.
É aqui, nesta encruzilhada de relações sociais, neste cruzamento de diferenças, que entram em campo a independência e as convicções.
Confiar, respeitar, contribuir, produzir, conviver, partilhar, são ações fundamentais na relação entre pessoas e entre elas e as instituições.
Estar ao lado de pessoas e de instituições que representam um determinado poder político não é uma rendição a nada, não é escolher um lado, nem por troca de princípios, nem por ocupação de trincheiras.
O que acontece é que esse poder político, por força das suas competências, assume a gestão de espaços públicos e desenvolve ações em domínios fulcrais para a manutenção de uma identidade local.
Portanto, há coisas relativamente às quais nós não temos de estar do lado de ninguém ou de instituições, estamos apenas e só ao lado dessas próprias coisas porque sabemos que elas são estruturantes, fabulosas, incontornáveis, transversais, mas necessariamente independentes de conjunturas ideológicas.
A defesa da cultura, do conhecimento, das tradições, da memória, compete a cada um de nós, seja através da criação, seja como espetador. Cada um tem o direito a manter os seus princípios, mas também tem o dever de sair da sua trincheira. Para que, reduzida a indiferença e a maledicência, cada um possa contribuir para o desenvolvimento equilibrado e proveitoso de uma comunidade.
Há um lado privado e um lado público. Há um lado individual e um lado comunitário.
Por princípio, não nos devemos esconder em trincheiras.

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