Gente como nós

Paulo Geraldo

professor de língua portuguesa

Não entendo os telejornais, os jornais, os noticiários.
Há dezenas de anos que ando por aqui e tenho visto muito pouco daquilo a que eles se referem quase em exclusivo. Vivi bastante e vi muitas outras coisas muitíssimo mais interessantes. Quando me encontro com os amigos falamos de outro género de assuntos.
Hoje em dia é preciso ser-se reles, ou vulgar, ou ter escorregado, para se ser notícia, para colocar o rosto na televisão.
Tenho a certeza de que o mundo não é assim. Não quero aconselhar ninguém a fechar os olhos à realidade; desejo apenas sugerir que talvez a realidade não seja exactamente essa que nos mostram. A vida, como uma pintura, tem zonas de sombra e zonas luminosas. Há-de haver uma psicose qualquer, ou uma intenção retorcida, na insistência em reparar apenas nas sombras.
Há pessoas fantásticas, que fazem coisas fantásticas. E há mais luz do que sombras.
O Bruno, não conseguindo deixar de fumar, inventou um belo estratagema para, pelo menos, reduzir o número de cigarros. Resolveu fazer uma coisa semelhante a outras que fazia quando era menino: a partir de certa altura, destinou a esmolas todo o dinheiro que poupasse reduzindo o número diário de cigarros. Cerca de 20 cêntimos por cigarro… Animou-se. Hoje tem no carro um carregamento de pacotes de leite, que oferece nos semáforos e nos lugares de estacionamento e onde calha. E anda com novos planos…
A Ana, em Lisboa, mantém certamente o velho hábito, que tanto nos intrigava, de se calar durante uns momentos sempre que passava por ela uma ambulância (e não eram poucas vezes). Um dia descobrimos que rezava uma Avé Maria pela pessoa que ia aflita na ambulância. Afligia-se com ela, mesmo sem saber quem era, e ajudava da maneira que estava ao seu alcance.
No lugar onde moro, durante o Inverno, a manhã chega e mostra tudo branco. Ora, a geada cai também sobre os automóveis, e o meu dorme ao relento. O que é um problema quando é preciso sair cedo de manhã. Depois de uns dias em que gastava uns minutos a escavar no gelo umas pequenas aberturas que permitissem um mínimo de visibilidade, e de formular, sem consequências…, o pensamento de que era urgente resolver aquela questão, ela resolveu-se sem a minha intervenção: um dia, ao regressar das aulas da noite, notei que alguém tinha colocado sobre o vidro da frente do automóvel um cartão que o cobria completamente e impediria a geada de actuar. Quem foi? Não sei. Não deixou assinatura. Talvez um vizinho. Alguma dessas pessoas que nunca vemos na televisão.
A Isabel é minha aluna à noite. Trabalhava numa dessas fábricas que fecharam recentemente, e ficou desempregada. Tem filhos. Mas não se encerrou em lamúrias e manifestações de rua. Voltou a estudar, dezoito anos depois do último dia em que tinha estado sentada num banco de escola. Não conseguiu passar no primeiro exame que fez comigo, o que é natural, mas tem a minha admiração e há-de conseguir chegar onde quer.
O Armando acorda antes das sete horas da manhã, numa aldeia onde há gelo e neve, e trabalha até às 6 horas da tarde na construção civil. Janta qualquer coisa, e uma hora mais tarde já está nas aulas. Não chega a casa antes da meia-noite. No dia seguinte recomeça… Olha-me com os olhos vermelhos de sono, enquanto lhe explico “Os Lusíadas”. E aprende tudo.
Há pessoas fantásticas, que fazem coisas fantásticas. Não, talvez, coisas chamativas – não foram achados dignos de ir à televisão… – mas fazem com grandeza coisas que são enormes na sua normalidade.
E não são casos raros. Não são pessoas especiais: são gente como nós.

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