“<i>A clérigo sandeu
parece-lhe que todo o mundo é seu</i>”
(Provérbio popular)
Recentemente, um padre de Castelo de Vide foi notícia pelo pior dos motivos: o fundamentalismo religioso que lhe cega a razão.
Escreveu ele, no seu boletim paroquial, que as mulheres que abortam estão impedidas de ter um funeral religioso, sendo “automaticamente excomungadas” pela Igreja Católica. Para isso invoca o Código Canónico, segundo o qual o funeral católico é um “sinal da plena comunhão”!
Ora… sendo a comunhão — em termos católicos — o acto de receber o sacramento da eucaristia, eu só o posso receber estando vivo! Quando passo à condição de cadáver não dou nem recebo coisa alguma, já que para se dar ou receber o que quer que seja é necessário possuir a consciência de que se dá ou recebe; e um morto não tem consciência! Sem consciência, os actos de dar ou receber não têm qualquer significado e ficam-se pela intenção que não pode ser concretizada por falta do outro interveniente no processo!
Eventualmente, o morto poderá “dar” mau cheiro… se não for convenientemente enterrado!…
O cego fundamentalismo religioso só vê o que lhe interessa e que está a dois palmos do nariz. A três palmos já não enxerga coisa nenhuma, que é a distância a que está a razão, a tolerância, a solidariedade e o respeito pelo outro, pela sua liberdade de escolha, pelo seu próprio raciocínio e pela sua consciência.
E as consciências criam-se e educam-se… não se impõem!
Há dias assisti a uma missa de sétimo dia do falecimento de um amigo. Nas ladainhas finais, por entre repetidas frases apelando à oração, ouvi esta pérola: “Oremos, irmãos, por quem sofre o aborto voluntário” (!?).
Os fabuladores religiosos não entendem que quem aborta voluntariamente é porque quer! E quando se tem o que se quer, dispensam-se preces. Ao contrário, a mulher que deseja gerar um filho e sofre um aborto expontâneo é que merecia a preocupação e as orações da comunidade religiosa, se esta fosse verdadeiramente fraterna e solidária! Mas não. Nas missas não são lembradas as verdadeiras vítimas do aborto, que são aquelas mulheres que abortam expontaneamente, desejando o filho que começavam a gerar.
A esperança desfeita que faz sofrer a mulher que queria ser mãe, não tem qualquer importância para os fabuladores, que nem as consideram nas suas preces!…
O fundamentalismo religioso está presente na campanha para o referendo ao aborto, porque atemoriza consciências religiosamente deformadas. Por isso faz passar a ideia falsa de que provocar o aborto — naquele período em que o óvulo fecundado não é mais do que uma pequena pasta de sangue — é igual a matar uma criança nascida, rechonchuda, de caracóis loiros, olhos azul–mar e dentes a despontar! Podia dar-lhes para dizer que praticar o aborto voluntário, segundo o diploma que o legaliza, é igual a matar generais… Porque se essas “crianças” fossem nascidas, ao atingirem os 20 anos podiam ingressar nas fileiras do Exército e chegar à patente de general!… Mas não! Ficam-se pelo acto de matar criancinhas por ser imagem que compra consciências (mal) educadas no credo religioso.
Aceito que religiosas, e não religiosas, defendam a evolução do embrião que se encontra no seu corpo e não queiram abortar uma gravidez não desejada e a assumam <i>a posteriori</i>, com todos os sacrifícios que daí lhes advém, como que se essa gravidez tivesse sido concretizada em consciência. Aplaudo-as por isso!… Mas não aceito que quem assim actue queira ver o seu particular modo de actuar transformado em forma de lei a ser imposta a uma comunidade, e com severas sanções penais para quem não comungue das suas vontades!
Voltando ao princípio desta prosa, à atitude do padre que foi notícia, tal coisa merece-me o seguinte comentário:
Excomungar um crente, é como impedir a entrada no Estádio do Dragão a um adepto ferrenho do “fê-quê-pê”. Tal acto só é sentido como castigo pelo próprio, se ele padecer de clubite aguda! Se for apenas um eventual espectador de futebol enquanto mero desporto, ou um assistente de missas impostas por tradições sociais de valor etnológico, ele pode continuar a ver jogos de futebol e celebrações litúrgicas… pela televisão!
A necessidade viciante de assistir a missas ou a jogos de futebol está no patamar das falsas necessidades que a sociedade nos impõe. Excomungar quem julga precisar de assistir a missas… Pode ser uma excelente terapia para quem sofre do consumo exagerado de um credo religioso.