Estado da nossa democracia

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Sérgio Engana

Presidente da Junta de Freguesia de Salvada

A velha máxima “atrás de tempos, tempos vêm …” pode fazer-nos pensar que a História se repete, mas não o afirmaremos convictamente. E bom será que os exemplos de má memória se não repitam …
Vem isto a propósito da breve reflexão que pretendemos fazer sobre o estado da democracia em Portugal, tendo presente o seu primeiro ensaio com a I República, a interrupção com o salazarismo/ Estado Novo e os 37 anos da democracia instaurada com o 25 de Abril de 1974.
Quando assistimos à revolta determinada do mundo árabe para exigir uma nova ordem, uma ordem democrática e livremente consentida, as chamadas velhas democracias do ocidente, e particularmente Portugal, atravessam uma profunda crise, que apesar de financeira, tem obviamente contornos de natureza económica, social e também política, sendo esta em muito associada aos “velhos” partidos e aos políticos com responsabilidades de decisão e que têm vindo a descredibilizar a democracia representativa.
Se os povos árabes exigem liberdade, a queda de ditadores e a instauração de democracias, a nossa democracia apresenta sinais de doença, que em outros tempos permitiu fundamentar a estruturação do salazarismo, e a que os tempos actuais recomendam atenção, para que não se repita algo de semelhante ao abalo da I República e para que sejam ouvidos os gritos da sociedade em formas de democracia participativa, cuja emergência é tanto mais pertinente quanto os cidadãos em geral deixaram de se rever na classe política que diz representá-los.
Na conjuntura em que se deve equacionar a queda da I República, e sem partilharmos das ideias daqueles que a atacam para “branquear” o Estado Novo, registamos palavras de Trindade Coelho – filho do escritor – que chegou a ministro dos Negócios Estrangeiros da ditadura (tomou posse em 27/7/1929) e referia: “(…) Os que traíram a República foram aqueles que, durante anos, fizeram dela, sem decoro nem dignidade cívica o trampolim dos seus interesses de corrilho (…)”. Ora, é óbvio que desta forma pretendia o mesmo defender o regime da ditadura, que de democrático e republicano nada tinha. E defendê-lo dos ataques daqueles que na sua perspectiva haviam comprometido a República.
Mas, o que nos deixa apreensivos, é que na actual realidade portuguesa há muitos que estão a trair a República, pela sua actuação sem dignidade cívica e em favor dos seus interesses…
Continuando a recorrer a palavras proferidas em outro contexto, mas adaptáveis à nossa reflexão, leiamos Ramada Curto no jornal “A República Social’” (14/1/1933), referindo-se à corrosão da Aliança Republicano Socialista, devida aos “velhos partidos que continuavam fechados, irredutíveis, imobilizados na sua impotência e na sua teima, com os seus directórios, os seus pró-homens, as suas aspirações próprias”.
Como é possível que 37 anos depois do 25 de Abril, possamos constatar que no nosso espectro político haja “velhos” partidos fechados, impotentes para resolver os nossos problemas, preocupados com os seus homens e interesses próprios?…
Ainda nessa conjuntura recuada, e a propósito de artigos de Brito Camacho, escrevia Bourbon e Meneses, em véspera da sua saída do Partido Socialista, que “os partidos republicanos, cujas responsabilidades no advento da actual situação governativa são indiscutíveis, encontram-se inteiramente esgotados sob o ponto de vista ideológico e por completo divorciados do espírito e dos sentimentos populares (…)”.
Ora, se a ditadura é responsável pela não consolidação de estruturas partidárias organizadas, com excepção da forma como o PCP se reforçou na clandestinidade, vivemos em democracia há mais de um quarto de século, e afinal assistimos a que os partidos que alternam no poder estão esgotados do ponto de vista ideológico e divorciados do povo que afirmam defender!
Inacreditavelmente, os argumentos dos distantes anos Trinta assentam aos tempos actuais, são pertinentes e devem levar os partidos a reflectir, a interpretar os sinais, a não esquecer as vozes silenciosas que se podem levantar, pois o “povo é ainda quem mais ordena”, o “povo unido jamais será vencido”, e a juventude é uma força importante e descontente, “a geração à rasca»”…

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