Em grande

Sandra Serra

Pensar em grande. Quantas vezes não ouvimos já esta frase, esta recomendação. Muitas vezes quase que esta imposição: “Tens de pensar em grande”. E não somos só nós enquanto pessoa individual, a família tem de pensar em grande, a comunidade tem de pensar em grande. O país. O mundo. Gigantes, erguei-vos.
E assim lá vamos nós pensando em grande. Ser o melhor. Ter o melhor. A sociedade, esse “ela” que paira sobre as nossas cabeças, a tal nos obriga, dir-me-ão. E a sociedade também pensa em grande. Se a sociedade praticasse salto em altura nunca tentaria o salto a menos de dois metros. Porquê tentar os 50 centímetros se posso logo saltar 200? E talvez consiga. Mas talvez nunca consiga saltar os 50. E talvez nesse entremeio tenha perdido a sustentação que a fará aguentar-se nos 200. Ser grande pode ser tão frágil quanto o levíssimo toque que derruba a fasquia e faz com que o atleta seja eliminado da prova.
Nesta coisa do pensar em grande, vêm-me à memória uma conhecida. Maria de Fátima, é o seu nome. Maria de Fátima não sabia ler nem escrever. Não conheceu o mundo, nem tão pouco a aldeia mais próxima. Nunca foi ao cinema, nunca viu televisão. Nunca comeu pipocas ou um corneto de morango, mas costumava dizer, acreditando nas suas palavras como uma verdade inabalável: “As coisas pequenas que fazem a vida. A gente não precisa de pensar em coisas grandes”. Talvez a vida de Maria de Fátima pudesse ter sido diferente se tivesse ousado pensar em grande. Talvez tivesse vivido numa vivenda com jardim relvado e fosse jantar fora. Quem sabe saberia ler. Quem sabe até pudesse ter sido escritora e contasse nas páginas dos seus livros uma história como a sua, mas distante, a história de uma outra Maria de Fátima que não ela. Talvez não se tivesse matado. Talvez tivesse antes morrido de ataque cardíaco.
As pequenas coisas que fazem a vida, dizia Maria de Fátima. E como a vida dela não foi fácil (usando aqui o termo – fácil – no sentido burguês da palavra). O valor que Maria de Fátima deu às pequenas coisa da sua vida fez com que matasse como ninguém uma galinha. Que no cuidar da casa não houvesse mulher mais prendada do que ela. Que percebesse o choro ou o riso da filha como nenhuma mãe. Maria de Fátima saltaria como ninguém os 50 centímetros em barreiras. Nunca tentou os 200 mas, acredito, se tivesse tido essa vontade, fá-lo-ia facilmente.
Nesta coisa do pensar em grande, há que primeiro pensar nas pequenas coisas e fazê-las bem. Construir um caminho. Sustentar uma casa. Nesta coisa do pensar em grande, não faltam por aí pessoas, instituições, eventos, que nunca saltaram os 50 centímetros. E na falsa grandeza da sua condição descuram o pequeno que lhes poderia dar a alma e o cariz da grandeza conseguida. A grandeza vem de dentro de cada um de nós, pessoa, instituição, evento, e nunca será alcançada por imposição prepositiva externa. Porque será sempre uma imposição e nunca levará com ela as pequenas coisas que a poderão fazer ser genuína.

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