Nota prévia: Este é um exercício de escrita ficcional, marcadamente satírico, e poderá, e irá certamente, ser lido em várias localidades sob várias perspectivas.
Eles, esses outros, essa gente que está no lado errado, essa gente vil, perigosa, esses seres vulgares, de menor inteligência, de baixa moral, de inferior ética, esses desonestos, essa gentinha falsa, essa gentalha oportunista, esses indivíduos sem princípios, esses e essas que pensam que são donos da verdade.
Eles, o pronome ao qual nós felizmente não pertencemos, esse sujeito nunca conjugado por nós e pelos nossos, nós não pertencemos a essa laia, nós e os nossos somos de outra estirpe, somos farinha de outro saco, nós somos feitos de materiais mais nobres, de bandeiras mais bonitas, de competência e clarividência, só nós temos espinha direita e razões para falar, há muitos anos que cá andamos, eles, esses outros, era melhor que se calassem, até parece que não têm memória, nós temos, temos aquela que queremos, temos aquela que nos interessa. E eles inventam coisas, até inventam futuros, até inventam passados, dizem que andámos por onde nos apeteceu e só nos lembrámos agora, que andámos por cá mas só agora é que nos lembrámos, que podíamos ter cá ficado mas não quisemos, que eles queriam cá ficar mas nós não criámos condições para isso. Devem estar a ver-se ao espelho. O que vale é que o povo não dorme. Cada um sabe de si e o povo sabe de todos.
Eles, esse nível indigno, esse patamar abjecto, essa aberração da espécie. Ainda bem que nós não somos como eles, temos outra pinta, temos outro calibre, outra inteligência, outro estatuto. Nós não nos damos com tal turba, essa tropa fandanga, esse bando de malfeitores, nem bom dia nem boa tarde, quanto mais conviver. Eles a um lado e nós a outro, não cruzamos caminhos, não frequentamos os mesmos sítios, por estas alturas nem nos podemos avistar. Podemos não ser tantos como eles mas somos melhores. E se formos mais do que eles é porque somos melhores.
Eles andam por aí a iludir as pessoas, são capazes de dizer tudo, os esquemas estão montados, vale tudo para ganhar, entram para dentro da casa das pessoas e enganam-nas com falsas promessas. Mas nós não, as nossas boquinhas estão benzidas, nós somos correctos e leais, nós acreditamos na democracia, nós aplicamos os princípios da liberdade, eles não, eles fazem jogo sujo, nós estamos bem preparados, eles não, quem pensar um bocadinho consegue ver a diferença.
Que bonitos nós somos e que feios eles são. Os nossos, ai os nossos, ai os sorrisos dos nossos, que belo exército, que feitios tão aprumados, que tão boas famílias, que tão boas maneiras – é preciso confessar que nós só gostamos de alguns nestas alturas, de resto não lhes passamos cartão – gente capaz e responsável que se juntou por uma boa causa e que sabe o que é melhor para a terra, não é como eles que só andam nisto por interesse.
Eles? Tomara eles serem como nós!