Diário virtual?

Jorge Pulido Valente

António tinha o seu despertador preparado para tocar às 7h30 da manhã mas meia hora antes já estava acordado porque a vizinha de cima, como habitualmente, não cumpre o seu dever de respeitar o descanso dos outros e saltita pela casa toda com os seus saltos de barulho irritante a ecoarem por todo o prédio.
Levanta-se, abre a porta que dá para a sua varanda e o seu olhar em vez de se prender no lindo céu azul e no sol brilhante que inunda a manhã, dá de caras com os papéis de gelados e embalagem de pipas que a adorável criança que habita no terceiro andar, a qual os pais não cuidam de repreender por não cumprir um dever tão simples, insiste em lançar pela janela fora e que o vento invariavelmente distribui pela vizinhança.
Já com o pequeno almoço tomado, sai de casa, desce as escadas do prédio e depara-se com mais um incumprimento recorrente dos condóminos, a porta do prédio escancarada, apesar do aviso em letras vermelhas colado na porta: para sua segurança, fecha a porta.
Dirige-se ao seu carro e por milímetros consegue evitar ficar com o seu sapato cheio de m… que o cão de um qualquer morador do bairro depositou no passeio e que o respectivo dono, não cumprindo o seu dever, deixou abandonado em vez de o apanhar com um saco de plástico e depositá-lo no lixo.
A caminho do café passa por um ecoponto e o cenário que se lhe depara deixa-o, mais uma vez, desgostoso com a atitude incumpridora dos deveres por parte dos seus concidadãos. Sacos de plástico cheios de resíduos fora do molok, papelão espalhado em volta dos contentores, peças velhas e deterioradas de mobiliário.
Ao transitar pela cidade em direcção ao seu local de trabalho assiste a inúmeras faltas de atenção aos deveres dos automobilistas, desde os carros estacionados em cima dos passeios ou em segunda fila, aos condutores a falar ao telemóvel em andamento, passando pelo desrespeito pelos peões nas passadeiras.
Chegado ao parque de estacionamento junto da empresa onde trabalha, quase que perde a cabeça ao verificar que não só o local reservado à sua viatura de deficiente está ocupado indevidamente, como ainda por cima, apesar dos lugares estarem delimitados com pinturas no pavimento, um colega ocupou dois lugares com uma única viatura.
Às 9h00 em ponto está já a trabalhar, mas entretanto alguns dos seus colegas têm público que reclama para ser atendido porque, como a grande maioria dos portugueses, não respeitam o seu dever de cumprir os horários.
Entretanto, como habitualmente o serviço complica-se porque há sempre um funcionário ausente que justificou de véspera a sua falta por motivos pessoais, pedindo que a mesma seja descontada nas férias do ano que vem. Neste país até existe cobertura legal para o incumprimento do dever de assiduidade.
Como o tempo para o almoço é curto e a oferta de refeições rápidas e baratas é grande, resolve fazer a sua refeição nas imediações do seu local de trabalho. Come bem, a companhia foi agradável, a conta foi razoável, mas não sai do restaurante sem ter que reclamar porque o patrão em vez de, automaticamente, lhe dar uma factura, como é seu dever, pergunta se a vai desejar.
Depois de um dia de trabalho, António, para descontrair e porque gosta de participar vida cultural da sua cidade, decide assistir a uma sessão de poesia, mas não fica até ao fim porque dois espectadores insistem, apesar de chamados à atenção por diversas vezes, em perturbar o evento conversando incessantemente.
Regressado a casa, depois de um leve jantar, dispõe-se a ver e ouvir as notícias na televisão. O telejornal abre com longos minutos sobre um importantíssimo jogo de futebol decisivo para o combate à crise e o desenvolvimento do país, mas, logo em seguida, é interrompido para dar lugar a um extenso período de publicidade… está assim cumprido o dever de serviço público da nossa televisão.
São já horas de procurar o sossego para recuperar deste dia tão cansativo. Nada que um bom sono não repare. Puro engano, porque alguns jovens da geração à rasca resolvem que a melhor maneira de se divertirem, cumprindo os seus deveres de cidadãos que exigem o respeito rigoroso pelos seus direitos, é ouvir música aos altos berros, dentro das viaturas que os seus papás estão a pagar, de portas abertas, na rua onde mora o nosso António. Coitado!

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