Deixem-nos casar, porra!

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

António Revez

Eu sou homossexual. Tenho um namorado. Amamo-nos e queremos casar. A nossa felicidade passa por darmos este passo. Queremos casar em Portugal, juntar as nossas famílias e uns amigos e casar. Temos esse sonho, esse desejo, essa aspiração. Queremos selar a nossa relação com o casamento, e também ficar melhor protegidos face às leis civis e fiscais. Queremos casar pelo registo civil em Portugal. Mas não podemos. Porque em Portugal só os casais “tecnicamente” heterossexuais é que têm direito a casar. Digo “tecnicamente” porque muitos homossexuais ou bissexuais casam com mulheres por mil e uma razões que nada têm a ver com a verdadeira orientação sexual e afectiva dos parceiros.
Eu não sou homossexual, mas podia ser. E se fosse, e quisesse casar com o meu companheiro, tinha de procurar exílio matrimonial num país civilizado onde os casais, independente do género e orientação sexual dos membros, podem casar pelo registo civil.
Todos estamos recordados da frustrada e frustrante tentativa de casamento civil do casal de lésbicas, Teresa Pires e Helena Paixão. O acórdão do Tribunal da Relação negou o casamento a estas duas mulheres, sustentando a sacralização do matrimónio, entendido como uma instituição onde só tem cabimento o enlace matrimonial de um casal em que um dos membros tenha “tecnicamente” uma pilinha e o outro uma rolinha.
Recordemos também que o que estas mulheres exigem, no respeito pelo que consideram ser um momento da sua realização pessoal e sentimental, é o direito a celebrar um contrato de casamento civil, e o direito, conexo com aquele, a não serem discriminadas em função da sua orientação sexual, tal como determina a Constituição Portuguesa depois da alteração introduzida em 2004.
Pessoalmente, não compreendo por que é que duas mulheres, ou dois homens, querem servir-se de uma forma de consagrar a união entre duas pessoas, que ao longo da história foi um instrumento de opressão patriarcal, de demarcação e definição de género, de moralização da vida afectiva e de prescrição normativa de valores e sentimentos.
Pessoalmente não compreendo, mas isso pouco ou nada importa. Não sou obrigado a compreender, sinto-me é obrigado a respeitar e a defender que a lei permita a todos os casais, heterossexuais, homossexuais, bissexuais ou o que possam ou queiram ser do ponto de vista da sua orientação sexual, de contraírem o casamento civil, se essa for a sua vontade. São pessoas, não podem ver os seus direitos amputados pelo facto de amarem pessoas do mesmo sexo.
Esta é uma questão de cidadania e uma questão civilizacional. É uma questão jurídica mas é sobretudo uma questão política.
O casamento religioso, seja qual for a religião, tem implicações metafísicas, teológicas e morais que tornam inviável um casamento entre homossexuais. E os dirigentes dessa Igreja ou seita, não sendo estas entidades públicas, têm o direito de regulamentar, mesmo que seja de forma discriminatória, pois só aceita tais regras quem se quer submeter a elas voluntariamente.
Completamente diferente é o casamento civil, e nesse sentido o Governo espanhol, tal como fizeram os governos de outras latitudes, como é o caso da África do Sul, operaram alterações legislativas por forma a que a lei civil admitisse situações que décadas atrás não eram ainda emergentes. Mas são-no hoje, onde a comunidade homossexual conquista a cada dia espaço de afirmação e visibilidade social, e pretende ver reconhecidos os seus direitos de cidadania. Entre esses direitos figura o direito à contratualização matrimonial, pois também existem, com todo o direito, gays e lésbicas tradicionalistas que querem casar pelo registo civil
E só é lamentável que o partido que sustenta o Governo português, e ao arrepio do que tem sido a protestativa voz da Juventude Socialista, já tenha anunciado que conta votar contra os projectos-Lei do Bloco de Esquerda e d’Os Verdes, que visam modificar o Código Civil e possibilitar o casamento entre casais homossexuais. E parece que vai impor a disciplina de voto, o que até é uma habilidade politicamente correcta para evitar que saiam do armário parlamentar alguns deputados ou deputadas mais ou menos… assumidos, na tristeza de um país em que ninguém do mundo da política tem a coragem de assumir a sua homossexualidade (à excepção da malta do BE), e na tristeza de um país em que ainda é relevante politicamente que as pessoas homossexuais do universo político se assumam publicamente. E assim, adiar-se-á pôr termo aos preceitos sexistas e discriminatórios do nosso Código Civil, que restringe a felicidade matrimonial aos casais de orientação sexual heterossexual. Mas continuará, às mãos de um partido dito socialista, mais um naco do Portugal provinciano, conservador e reaccionário.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Em Destaque

Últimas Notícias

Role para cima